Este capítulo examina as questões enfrentadas pelas instituições de auditoria externa no acompanhamento de questões e políticas transversais entregues através de diferentes níveis de governo. Primeiro, estabelecem-se as bases, a partir da definição de governança multinível e pela observação das tendências de descentralização. Em seguida, com base nos estudos da OCDE e nas melhores práticas, retomam-se os vários aspectos envolvidos na execução de políticas de auditoria em um cenário descentralizado, focando diretamente no contexto brasileiro e seu excepcional grau de autonomia local. Abordando o tema da responsabilidade pública, a discussão prossegue para esclarecer a distinção entre estruturas de auditoria externa centralizadas e descentralizadas, e entre mandatos exclusivos e complementares/concorrentes. Após destacar os desafios de auditoria externa específicos do Brasil, o capítulo conclui com um roteiro de áreas-chave prioritárias para melhorar a auditoria de políticas públicas descentralizadas em estruturas complexas de prestação de contas, com ênfase na coordenação entre os órgãos de auditoria.
Auditoria de Políticas Públicas Descentralizadas no Brasil
1. Auditoria de políticas públicas descentralizadas: Desafios para o Brasil
Abstract
Introdução
Em muitos países, a elaboração de políticas e a prestação dos serviços públicos ocorrem através de diferentes níveis de governo. Este cenário é especialmente recorrente no contexto de políticas relacionadas a serviços públicos essenciais aos cidadãos, tais como educação, saúde, infraestrutura e saneamento (OCDE, 2017[1]). Embora a descentralização possa resultar em um maior envolvimento dos cidadãos e melhorar a prestação de serviços públicos locais, também pode representar desafios para as entidades fiscalizadoras superiores (EFSs) em termos de sua capacidade de avaliar todo o ciclo da política através do acompanhamento da cadeia de prestação de serviços.
As EFSs que pretendam ter uma visão de como os processos e programas funcionam em todo o governo podem considerar a incorporação da dimensão de governança multinível em suas auditorias (ver Capítulo 3 para detalhes sobre como isso pode ser feito).
O desafio pode ser mais complexo em países onde o sistema de auditoria externa compreende não apenas a EFS, mas também vários órgãos de auditoria externa subnacionais com mandatos específicos para auditar governos regionais e locais. Nesses casos, a compreensão transversal do valor de certas políticas públicas descentralizadas pode exigir colaboração estratégica entre esses órgãos.
O Brasil conta com um sistema de execução de políticas públicas descentralizado, baseado em um sistema complexo de governança multinível. Da mesma forma, o sistema de auditoria externa brasileiro é também descentralizado. Os tribunais de contas federais, estaduais e locais do país podem melhorar seu próprio desempenho, impacto e relevância, através de uma supervisão mais coordenada das políticas descentralizadas. O presente capítulo introduz quais são os desafios e conceitos-chave para a elaboração e execução de políticas descentralizadas, apresentando a base dos capítulos subsequentes do relatório e das recomendações para que os tribunais de contas no Brasil fortaleçam sua auditoria e coordenação em um contexto descentralizado.
Execução de políticas públicas descentralizadas e governança multinível
Descentralização geralmente se refere à transferência de poderes e responsabilidades do governo central para as autoridades eleitas em nível subnacional (governos estaduais, regionais, municípios, etc.) com um certo grau de autonomia. Os indicadores fiscais e institucionais mostram que a tendência geral dos governos em todo o mundo tem sido para a descentralização (OCDE, 2019[2]) (ver Quadro 1.1).
Quadro 1.1. Tendências de descentralização
Grande parte da descentralização ocorrida na última década foi motivada por questões políticas. Na América Latina, por exemplo, a descentralização tem sido uma parte essencial do processo de democratização, quando regimes centrais autocráticos desacreditados são substituídos por governos eleitos que operam sob novas constituições. Na África, a disseminação de sistemas políticos multipartidários cria uma demanda por uma voz mais local na tomada de decisões.
As economias em transição dos antigos estados socialistas também se tornaram majoritariamente descentralizadas com o desmoronamento do antigo aparato central. Em muitos países, a descentralização ocorreu em razão da ausência de qualquer estrutura de governança alternativa significativa para fornecer serviços de governo local. Em alguns casos, e particularmente na Ásia Oriental, a descentralização parece ser motivada pela necessidade de melhorar a prestação de serviços a grandes populações e pelo reconhecimento das limitações da administração central.
Atualmente, as regiões e municípios representam 40,4% dos gastos públicos e 56,9% dos investimentos públicos dos países da OCDE. Eles desempenham um papel cada vez mais importante em aspectos chaves das políticas, tais como transporte, energia, banda larga, educação, saúde, moradia, água e saneamento. Tais níveis de governo são responsáveis, por exemplo, por 64% dos investimentos públicos relacionados a meio ambiente e ao clima.
As tendências de descentralização em todo o mundo foram acompanhadas por um aumento da governança metropolitana e pelo fortalecimento das regiões. A fragmentação municipal impulsionou políticas de incentivo ou imposição de unificação e cooperação entre os municípios. No entanto, a fragmentação ainda permanece elevada em alguns países. Os municípios com menos de 5.000 habitantes representam 44% de todos os municípios nos países da OCDE. Em dez países, esta proporção excede 80%.
O número de autoridades de governança metropolitana criadas, independentemente da área, tem aumentado especialmente desde a década de 1990. O papel crescente das regiões administrativas também tem sido marcante: dos 81 países mensurados pelo Índice de Autoridades Regionais, 52 experimentaram um aumento no grau de autoridade regional desde a década de 1970. Paralelamente à descentralização, houve um aumento na descentralização assimétrica, ou seja, governos no mesmo nível de governo subnacional com diferentes poderes políticos, administrativos ou fiscais. Embora a descentralização assimétrica pareça uma característica mais natural dos países federalistas, está cada vez mais presente em países unitários.
Fonte: (OCDE, 2019[2]) (World Bank, 2020[3]).
As reformas visando uma maior descentralização devem envolver uma mudança no papel dos governos centrais: de um papel direto na prestação de serviços para um papel de possibilitar, aconselhar e facilitar o trabalho dos governos subnacionais, assegurando ao mesmo tempo sua consistência. Em um cenário de responsabilidades compartilhadas, as políticas descentralizadas devem gerenciar a dependência mútua para alcançar objetivos comuns. (OCDE, 2019[2]).
Descentralização requer uma sólida governança multinível
A descentralização não é apenas um simples aumento do poder dos governos locais. A realidade é sensivelmente mais complexa, pois em todos os países, grande parte das responsabilidades é compartilhada entre os diferentes níveis de governo. Independentemente do grau de descentralização de um país, governos individuais ou departamentos governamentais raramente têm todo o poder e recursos necessários para responderem sozinhos, adequadamente, aos desafios políticos sob sua responsabilidade. Assim, independentemente do grau de descentralização das políticas, os diferentes níveis de governo precisam trabalhar em conjunto para atingir seus objetivos (Allain-Dupré, 2018[4]). Descentralização trata-se, portanto, de reconfigurar o sistema de governança multinível.
Quadro 1.2. Governança multinível: Uma definição
A governança multinível refere-se à interação entre os níveis de governo e uma ampla gama de partes interessadas – incluindo atores privados e cidadãos – ao elaborar e implementar políticas públicas com um impacto subnacional. Ao observar essas interações, é importante notar as condições que as fazem funcionar e produzir os resultados desejados das políticas, em particular em relação às políticas descentralizadas. Estas condições estão relacionadas à estrutura fiscal e à gestão financeira, bem como aos processos regulatórios envolvidos.
Igualmente importante, as capacidades de todos os níveis de governo, e particularmente dos níveis subnacionais, são uma dimensão chave do sistema de governança multinível. Capacidades devem ser entendidas como referindo-se aos arranjos institucionais, capacidades técnicas, recursos econômicos e práticas políticas que afetam os resultados das políticas, incluindo os processos de monitoramento e avaliação ligados à execução das políticas, ao engajamento das partes interessadas e conhecimento.
A governança multinível de políticas descentralizadas é caracterizada por uma dependência mútua entre os níveis de governo. Ela funciona verticalmente, horizontalmente e em rede com uma gama ampla de partes interessadas (cidadãos e atores privados), através de um maior envolvimento dos cidadãos e prestação de contas do governo.
As práticas de governança multinível fazem parte do sistema de governança de cada país, independentemente de seu grau de descentralização e se o seu modelo institucional é federalista ou unitário. Essas práticas estão fortemente relacionadas aos contextos locais e regionais; conjunção política; e restrições estruturais, incluindo características específicas dos países, como sua geografia, população, economia, contexto histórico e cultural, arranjos constitucionais e padrões organizacionais. Neste sentido, as práticas de governança multinível devem ser flexíveis e reformadas para permitir que a administração pública em todos os níveis governamentais se adapte continuamente a um ambiente em permanente evolução.
A governança multinível, portanto, difere da "governança monocêntrica". Esta última refere-se a uma abordagem na qual o governo central é o núcleo da autoridade política e exerce seu controle sobre a sociedade, a economia e os recursos, estabelecendo sozinho a agenda de problemas sociais e metas e meios políticos, e implementando de cima para baixo suas políticas. Com seu foco na ativação de interações relevantes em vários níveis, a governança multinível é considerada como tendo maior potencial para lidar com problemas complexos, multiescala e multissetoriais.
Há evidências de que quando a descentralização é adequadamente elaborada e implementada, ela produz uma série de benefícios, desde uma melhor prestação de serviços públicos locais e um maior envolvimento dos cidadãos até a redução da corrupção e um impacto positivo no crescimento. Isto geralmente coincide com uma melhor coordenação e alinhamento entre setores e partes interessadas, e uma melhor governança multinível (OCDE, 2019[2]).
No entanto, a elaboração/implementação insuficiente da descentralização e a falta de uma governança apropriada em vários níveis pode levar a uma execução subótima das políticas causada por lacunas, duplicações e sobreposições. Isto não só afeta o valor do investimento (público), mas também pode ter consequências para a prestação de serviços públicos e, portanto, para a vida dos cidadãos que dependem desses serviços.
Descentralização e governança multinível no Brasil
O Brasil se destaca como uma exceção entre os países federalistas, pelo papel proeminente desempenhado pelos municípios, um alto grau de autonomia local e nenhuma relação hierárquica entre os governos estaduais e municípios. A Constituição Federal de 1988 elevou os municípios brasileiros ao status de entidades federativas, em pé de igualdade com os estados e o nível federal. Os governos locais não são subordinados ao governo federal; os municípios são autônomos, embora algumas questões municipais dependam da legislação do estado do município (Constituição da República Federativa do Brasil, Art. 21-24).
No Brasil, como é o caso em todos os países da OCDE, as responsabilidades pelas políticas descentralizadas são compartilhadas entre todos os níveis de governo – saúde, educação, seguridade social, assistência social, agricultura e distribuição de alimentos, moradia e saneamento, entre outros. Cada nível é autônomo na legislação e na prestação de serviços, desde que estes não entrem em conflito com os poderes exclusivamente previstos ou legislados pela União Federal. A Constituição Federal reserva explicitamente certos poderes para o governo federal, ao mesmo tempo em que fornece mandatos amplos e gerais aos governos estaduais e municipais. Aos Estados são reservadas “todas s competências que não lhes sejam vedadas” pela Constituição, enquanto aos municípios é atribuído "o poder de legislar sobre assuntos de interesse local" e de prestar "serviços públicos de interesse público local" (Constituição da República Federativa do Brasil, Art. 21-30).
Entretanto, a Constituição também delineia uma série de áreas de políticas públicas onde as responsabilidades são detidas simultaneamente pelo governo federal e pelos estados, levando a sobreposições entre os níveis de governo. Essas áreas incluem saúde, proteção social, cultura e esporte, proteção do meio ambiente e proteção do patrimônio histórico e cultural (Constituição da República Federativa do Brasil, Artigo 24). Além disso, a lei federal geralmente estabelece condições gerais que podem ser mais detalhadas e regulamentadas pelos estados e municípios.
Acordos multiníveis são particularmente cruciais para assegurar uma coordenação eficaz no caso de políticas descentralizadas, que são altamente fragmentadas no Brasil tanto do ponto de vista vertical como horizontal (OCDE, 2013[6]). No nível horizontal, as instituições brasileiras tendem a trabalhar principalmente em silos organizacionais, o que significa que cada ministério setorial tem sua própria visão territorial que não necessariamente está coordenada com outros ministérios. O resultado é que cada ministério, estado, agência ou empresa pública persegue sua própria estratégia e objetivos políticos, criando possíveis coberturas das políticas e lacunas nos objetivos.
Em relação à dimensão vertical, duas formas de acordos multiníveis são particularmente comuns no Brasil – acordos contratuais e pactos federativos:
Convênios e contratos são regularmente utilizados para a cooperação entre as instituições públicas no Brasil. Estes contratos padrão permitem esclarecer as responsabilidades de cada nível de governo: por um lado, as funções de coordenação, regulamentação e financiamento do governo central e, por outro lado, as tarefas a serem assumidas pelo município.
Pactos federativos são conjuntos de disposições constitucionais estabelecidas por ministérios setoriais com liderança do gabinete do presidente, geralmente após consulta e negociação com governos subnacionais. Esses órgãos elaboram um conjunto de objetivos, papéis, responsabilidades e acordos de financiamento em uma área específica de políticas para cada nível de governo. Quando um setor tem direito a transferências discricionárias, o ministério federal pode fazer com que tais transferências sejam condicionais à adesão ao pacto. Estes pactos podem ser de amplo alcance; um exemplo é o Pacto pela Saúde aprovado em 2006. Atualmente, as discussões estão orientadas principalmente para que se faça um pacto federativo para estabelecer novas regras de supervisão dos orçamentos federal, estadual e municipal.
Alguns ministérios desenvolveram sozinhos mecanismos para assegurar uma coordenação vertical. Este é o caso, por exemplo, do setor da saúde, que é altamente descentralizado entre estado e os municípios. O Ministério da Saúde coordena a elaboração e a implementação de políticas através de comissões tripartites e bipartites, incluindo representantes da saúde dos três níveis de governo que se reúnem uma vez por mês (OCDE, 2013[6]). Entretanto, várias iniciativas no diálogo intergovernamental foram suspensas nos últimos anos (por exemplo, o Ministério das Cidades e o Conselho Nacional das Cidades; este último foi responsável pela implementação e monitoramento da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano). (OCDE/UCLG, 2019[7]; Diario Oficial da Uniao, 2019[8]).
Auditoria externa e descentralização
A crescente tendência em direção ao compartilhamento de responsabilidades entre níveis de governo observada nas últimas décadas também tem repercussões para as áreas de accountability, prestação de contas e auditoria. Ter uma auditoria externa independente é crucial nos acordos de prestação de contas públicas (ver Quadro 1.3). Auditorias financeiras e de conformidade são necessárias para avaliar a confiabilidade dos relatórios financeiros e a regularidade das operações dos governos nacionais e subnacionais. As auditorias de desempenho ajudam as autoridades nacionais e subnacionais a prestarem contas sobre a eficácia e eficiência da execução de suas políticas.
Quadro 1.3. Accountability e auditoria públicas
O termo Accountability pode ser entendido como a obrigação das organizações e indivíduos de prestar contas de suas atividades, aceitar a responsabilidade por sua conduta com relação a essas atividades e divulgar seus produtos e resultados.
Accountability ocorre em uma relação entre um "ator" e um "fórum", no qual o ator tem a obrigação de explicar e justificar sua conduta. O fórum pode fazer perguntas e julgar, e o ator pode vir a enfrentar consequências.
Accountability pública é a noção de accountability no domínio público e está relacionada ao domínio público. A accountability pública ajuda a incutir confiança de que o setor público está sendo administrado adequadamente. No exercício de accountability pública, os atores são entidades públicas, semipúblicas ou mesmo privadas que executam uma tarefa ou política pública, financiada por recursos financeiros públicos. Essas entidades podem ter que enfrentar múltiplos fóruns de prestação de contas, seja em uma relação hierárquica de "agente principal" (por exemplo, parlamento, conselho municipal, ministério), ou uma prestação de contas social horizontal aos interessados (por exemplo, usuários do serviço público).
As relações entre os atores e os fóruns de responsabilidade pública são institucionalizadas e estabelecidas em regras, exigências e processos, constituindo um arranjo de accountability.
A relação de accountability do "agente principal" compreende duas dimensões principais que moldam seu arranjo de accountability:
capacidade de resposta: a obrigação de fornecer informações, esclarecimentos, explicações e justificativas.
aplicação da lei: ação formal contra conduta ilegal, incorreta, ineficiente ou ineficaz da instituição responsável ou funcionário público.
Tanto a capacidade de resposta quanto a aplicação da lei exigem uma configuração institucional adequada em dois níveis: 1) mecanismos internos (dentro da cadeia burocrática de comando); e 2) mecanismos externos de supervisão e controle.
As instituições de auditoria do setor público atuam como mecanismos de supervisão externa; elas ajudam a criar condições adequadas para prestação de contas e accountability e reforçam a expectativa de que as entidades do setor público e os servidores públicos desempenhem suas funções de forma eficaz, eficiente, ética e de acordo com as leis e regulamentos aplicáveis.
Os problemas de muitos olhos e muitas mãos
O "problema de muitos olhos" refere-se ao fato de que as organizações públicas geralmente estão sujeitas à supervisão de não apenas um, mas vários fóruns, cada um com suas próprias exigências de informação e critérios (às vezes conflitantes) relativos à conduta esperada. Isto pode representar uma carga administrativa complexa para a entidade e prejudicar a eficiência e a relação custo-benefício de suas operações.
O "problema de muitas mãos" refere-se ao oposto, ou seja, ao fato dos fóruns públicos de controle serem confrontados com vários atores ou entidades, que contribuem com um elemento para o resultado da política ou do serviço público. É então quase impossível desvendar quem contribuiu com o quê e decidir sobre a ação corretiva apropriada. Isto pode representar um problema para as instituições de auditoria, cuja tarefa geralmente é fornecer ao fórum parlamentar uma visão da execução adequada das políticas governamentais, para que o governo possa ser responsabilizado.
Fonte: Elaboração baseada em (OCDE, 2020[9]; OCDE-SIGMA, 2017[10]; Bovens, 2007[11]; INTOSAI, 2019[12]).
Em geral, as funções da auditoria externa seguem acordos de prestação de contas. A responsabilidade descentralizada muitas vezes corresponde a ideia de accountability e prestação de contas múltipla e descentralizada, exacerbando a complexidade de haver "muitos olhos" e "muitas mãos" no controle público (ver Quadro 1.3). Se a EFS não for capaz de seguir e participar destes múltiplos acordos de controle descentralizado – por exemplo, por se encontrarem fora de sua jurisdição – enfrentará grande dificuldade para proporcionar uma visão transversal do desempenho das políticas.
Descentralização e a estrutura de auditoria externa
As estruturas de auditoria externa são um elemento institucionalizado dos acordos de accountability e controle do governo e, como tal, não tendem a submeter-se a mudanças frequentes. Estas estruturas variam significativamente de um país para outro. Na maioria dos países, as EFSs examinam as receitas e despesas dos orçamentos públicos em nível central ou federal. A responsabilidade pela auditoria externa em nível subnacional, entretanto, pode diferir consideravelmente. A variedade de modelos explica-se pela tradição, história, sistema administrativo, etc. Em alguns países, as EFSs possuem mandato para auditar os governos locais. Em outros, diversos órgãos de auditoria externa, ou mesmo empresas de auditoria do setor privado, são responsáveis pela auditoria de diferentes níveis de governo. Ainda, em outros países, há uma mistura de ambos (EUROSAI, 2020[13]).
Em geral, dependendo dos mandatos da Entidade Fiscalizadora Superior e da existência e dos mandatos das instituições subnacionais de auditoria externa, as estruturas de auditoria externa podem ser organizadas de forma centralizada ou descentralizada (ver Quadro 1.4).
Quadro 1.4. Sistemas de auditoria externa
Em junho de 2020, a OCDE convidou todas as 198 entidades fiscalizadoras superiores (EFS) membros da comunidade INTOSAI a participar de uma pesquisa on-line, com o objetivo de coletar dados sobre o papel das EFSs na auditoria em nível subnacional e a coordenação entre as EFSs e os órgãos subnacionais de auditoria externa.
O breve questionário foi respondido pelas EFSs de 60 países.
As respostas permitiram a identificação de três tipos principais de sistemas de auditoria externa:
1. sistema de auditoria centralizado, presente em países que contam com apenas uma instituição de auditoria e nenhuma entidade autônoma subnacional (34 respondentes – 57%);
2. sistema de auditoria descentralizado – mandatos exclusivos, presentes em países em que múltiplos atores são responsáveis pela auditoria dos diferentes níveis de governo, mas onde a EFS e as instituições de auditoria subnacionais têm mandatos exclusivos (7 respondentes – 12%)
3. sistema de auditoria descentralizado – mandatos concorrentes ou complementares, presentes em países em que a EFS tem mandato para auditar níveis locais, e os órgãos de auditoria em níveis subnacionais podem ter mandatos complementares ou concorrentes (19 respondentes – 32%).
Sistema de auditoria externa centralizado
Um país tem uma estrutura centralizada de auditoria externa se não há instituições subnacionais de auditoria. A EFS centraliza a atividade de auditoria externa e, como principal ator do sistema, não compartilha seu mandato com atores de qualquer outro nível de governo. (Figura 1.1).
Com este arranjo não há risco de duplicação ou sobreposição nos mandatos de auditoria, e é possível garantir-se uma abordagem uniforme para os auditados e políticas de auditoria nos diferentes níveis de governo. Neste modelo, a transferência de poderes e responsabilidades do nível do governo central para as autoridades eleitas no nível subnacional, devido à descentralização, não representa um risco inerente à auditoria de toda a cadeia de execução de políticas em múltiplos níveis de governança.
Os principais riscos que podem surgir neste sistema são as lacunas na cobertura de auditoria em todos os níveis de governo, devido aos recursos limitados e as barreiras geográficas que podem dificultar o conhecimento das particularidades e dos desafios enfrentados pelos níveis locais. Dependendo do tamanho do país, as EFSs podem enfrentar esses desafios a partir da manutenção de escritórios locais, gerenciados diretamente pelo escritório central, que podem conduzir o trabalho no nível local. Este é o caso, por exemplo, no Chile, Grécia e África do Sul.
Sistema de auditoria externa descentralizado – Mandatos exclusivos
Nesta estrutura, múltiplos atores são responsáveis pela auditoria dos diferentes níveis de governo, mas a EFS e as instituições de auditoria subnacionais têm mandatos exclusivos: a EFS não tem mandato para auditar os níveis subnacionais de governo, que é de responsabilidade exclusiva das instituições de auditoria subnacionais (Figura 1.2). Este modelo não é comumente adotado. Os países que adotam esta estrutura incluem a Holanda, a Argentina e a Lituânia.
O mandato específico dos órgãos de auditoria subnacionais difere de acordo com o país. Por exemplo, este pode ou não incluir a instrução para realizar auditorias de desempenho. Além disso, as instituições de auditoria subnacionais podem ser organizadas em nível regional e/ou local. Essas entidades são, em geral, autônomas e decidem de forma independente sobre seus próprios programas de auditoria.
Apesar de permitir uma maior cobertura de auditoria quando comparado aos sistemas centralizados de auditoria externa, este sistema pode levar a lacunas na cobertura de auditoria, senão houver capacidade profissional uniforme em todos os níveis do sistema de auditoria. Além disso, a auditoria de políticas públicas prestadas através de arranjos multiníveis pode ficar comprometida, resultando na fragmentação da cobertura. Mecanismos de coordenação entre os atores desta estrutura são necessários para superar estes desafios.
Sistema de auditoria externa descentralizado – Mandatos concorrentes e complementares
Este tipo de estrutura de auditoria externa também é descentralizado. A EFS tem um mandato para auditar os níveis locais até certo ponto, e os órgãos de auditoria em níveis subnacionais podem ter mandatos complementares ou concorrentes. Esta estrutura também é relativamente comum dentro da INTOSAI e está presente no Brasil, Espanha e México.
Neste sistema, os órgãos de auditoria subnacionais são autônomos e podem decidir individualmente sobre seus programas de auditoria. A extensão do mandato de auditoria das EFSs nos níveis subnacionais de governo difere de país para país. A EFS normalmente tem um mandato para auditar recursos advindos do nível central/nacional e transferidos para níveis subnacionais (abordagem "seguir o dinheiro"). Em alguns países, a EFS também possui um mandato para auditar políticas nacionais prestadas nos níveis subnacionais, e políticas subnacionais sob certas circunstâncias.
Este modelo pode permitir maior flexibilidade e oportunidades para que as instituições de auditoria promovam uma maior cobertura de auditoria – em relação a entidades auditadas e quanto às políticas públicas incluindo políticas prestadas através de acordos multiníveis. Para isto, entretanto, as instituições de auditoria devem implementar mecanismos eficientes de coordenação para evitar duplicações, lacunas e sobreposições no trabalho de auditoria.
Esses três riscos estão presentes em ambos os tipos de estrutura de auditoria descentralizada, particularmente quando as políticas centrais/nacionais são prestadas através de mecanismos descentralizados. Nesses casos, os acordos de prestação de contas e acordos de controle podem não corresponder à estrutura de auditoria externa.
O sistema de auditoria descentralizado no Brasil
O sistema de auditoria externa no Brasil é composto por 33 tribunais de contas, cada tribunal chefiado por um plenário colegiado composto de ministros ou conselheiros que tomam decisões em conjunto. Os tribunais atuam nos três níveis de governo – federal, estadual e municipal. No nível federal, o Tribunal de Contas da União (TCU) é responsável por examinar o orçamento e recursos federais, bem como por (entre outros) realizar auditorias a pedido do Congresso Nacional; supervisionar as entidades públicas federais; e investigar as queixas apresentadas por cidadãos, partidos políticos, associações ou sindicatos envolvendo irregularidades na aplicação dos recursos federais. O TCU também é responsável por supervisionar a aplicação dos recursos federais transferidos para os estados, o distrito federal e os municípios.
Os Tribunais de Contas do Estado (TCEs), são responsáveis pela auditoria a nível estadual. Cada um dos 26 estados da federação tem seu próprio Tribunal de Contas, que é financeiramente independente e tem total autonomia para administrar sua própria estrutura e decidir sobre seu programa anual de auditoria. O Distrito Federal conta, igualmente, com seu próprio tribunal.
Os TCEs também são responsáveis pela auditoria dos municípios de 23 estados. Além dos TCEs, os estados do Pará, Goiás e Bahia criaram Tribunais de Contas dos Municípios (TCMs), responsáveis pela auditoria exclusiva dos seus respectivos municípios. Além disso, dois municípios estabeleceram seus próprios Tribunais de Contas Municipais: São Paulo e Rio de Janeiro (respectivamente, o Tribunal de Contas do Município de São Paulo e o Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro).
A organização, tamanho e estrutura desses tribunais de contas (TCs) variam consideravelmente de uma instituição para outra. A composição do plenário e dos órgãos técnicos e o foco do trabalho de auditoria também podem diferir (por exemplo, os TCs no norte do país podem selecionar mais frequentemente auditorias relacionadas a questões ambientais, por conta de sua localização geográfica). Os tipos de auditorias que realizam, no entanto, não diferem drasticamente. Por exemplo, em 2018, para a maioria dos TCs, as auditorias de conformidade representaram pelo menos 90% do número total de auditorias realizadas naquele ano, e apenas um TC relatou que as auditorias de conformidade representaram menos de 50% do número total de auditorias realizadas (OECD-TCs Survey, 2020).
Os mandatos dos tribunais de contas subnacionais estão descritos na Constituição de cada estado e estão definidos mais detalhadamente nos estatutos e regulamentos internos de cada uma dessas instituições. Em geral, a maioria das Constituições dos estados e do estatuto dos tribunais reproduzem as disposições da Constituição Federal aplicáveis ao TCU – incluindo o artigo 71, VI, que estabelece o mandato do TCU sobre as transferências federais. Portanto, em termos gerais, cada tribunal de contas é responsável por supervisionar a aplicação dos recursos transferidos pelo nível de governo relevante (por exemplo, um estado) para outros níveis (municípios ou outros estados). Algumas Constituições também delegam a responsabilidade pela supervisão dos recursos recebidos de transferências de outros níveis de governo (é o caso, por exemplo, do Distrito Federal e dos estados de Minas Gerais e São Paulo).
Tais disposições e mandatos são necessários para a auditoria de arranjos multiníveis comuns no Brasil. Estes arranjos incluem, por exemplo, convênios, contratos que são regularmente utilizados para cooperação entre instituições públicas no Brasil, e os pactos federativos, acordos que incluem um conjunto de objetivos, papéis, responsabilidades e acordos de financiamento em uma área específica de políticas, para cada nível de governo (OCDE, 2013[6]). A relevância dos acordos e financiamentos multiníveis no Brasil é demonstrada pelo fato de que a receita tributária de fontes próprias representaram 34% da receita municipal total em 2016 no Brasil, contra 65% de transferências da União e dos governos estaduais (em comparação com 44,5% e 37,2% respectivamente, em média, nos países da OCDE) (OCDE, 2019[2]).
Os mandatos dos TC criam a necessidade de estruturas e acordos de coordenação envolvendo todos os atores do sistema de auditoria externa no Brasil. Na ausência de tais acordos, os mandatos podem resultar em duplicação, fragmentação e sobreposição da cobertura de auditoria, particularmente em relação às políticas públicas prestadas através de arranjos multiníveis.
Desafios e oportunidades para a auditoria de políticas públicas em um sistema descentralizado
Governança multinível e execução de políticas públicas
A sobreposição de tarefas entre níveis de governo é mencionada repetidas vezes como um sério desafio nas revisões territoriais e pesquisas econômicas da OCDE. A descentralização apresenta riscos para o desempenho das políticas quando não gerenciada adequadamente. Em geral, a descentralização apresenta desafios para os governos subnacionais porque requer certas capacidades econômicas, políticas e administrativas que podem não estar presentes em municípios menores.
A dimensão fiscal também apresenta desafios. Um dos mais frequentemente mencionado é o desalinhamento das responsabilidades atribuídas aos governos subnacionais com os recursos a estes disponíveis. Mandatos sem recursos ou com recursos insuficientes – quando os governos subnacionais são responsáveis pela prestação de serviços ou pela gestão de políticas públicas, mas não dispõem dos recursos necessários – também são comuns (OCDE, 2019[14]).
A grande dependência de transferências de fundos de governos centrais também pode reduzir os incentivos dos governos subnacionais para adotarem comportamento fiscal responsável. Os governos subnacionais precisam de receitas de fonte própria porque estas contribuem para a responsabilidade e eficiência da prestação de serviços públicos locais. Embora seja difícil formular uma regra geral para o grau ideal de autonomia fiscal, as autoridades locais devem contar com suas próprias receitas para financiar seus serviços à margem (OCDE, 2019[14]).
Outro importante desafio colocado pela descentralização é o das atribuições que se sobrepõem entre os níveis de governo. A falta de clareza na atribuição de responsabilidades torna a prestação de serviços e a elaboração de políticas mais onerosas. Além disso, contribui para um déficit democrático ao criar confusão entre os cidadãos a respeito de qual agência ou nível de governo é responsável pelo quê ou qual política pública. A descentralização desequilibrada, na qual as diversas áreas políticas são descentralizadas de diferentes maneiras, também pode enfraquecer as políticas de desenvolvimento regional (OCDE, 2019[14]).
A descentralização pode resultar na perda de certas economias de escala e na fragmentação das políticas públicas. Isto pode ocorrer especialmente se os governos subnacionais não forem capazes de cooperar entre si. A determinação do tamanho ideal da unidade subnacional é uma tarefa específica do contexto; varia não apenas por região ou país, mas também por área de política pública. Os governos nacionais têm um papel importante no estabelecimento de disposições legais, regulatórias e incentivos para fomentar a cooperação entre jurisdições, em particular dentro de regiões funcionais (OCDE, 2019[14]).
Esses desafios podem ter um impacto considerável na execução e relação custo-benefício das políticas públicas descentralizadas. Ao auditar o desempenho de políticas descentralizadas formuladas e prestadas através de diferentes níveis de governança, as EFSs podem aproveitar a oportunidade para considerar características do sistema de governança multinível que representam desafios para os níveis subnacionais de governo e reduzem sua capacidade de execução de políticas. O Capítulo 3 descreve como auditores podem elaborar e utilizar um referencial de governança multinível para e auditoria.
Políticas descentralizadas e sistemas de auditoria externa descentralizados
Obter uma imagem precisa da eficácia e eficiência das políticas descentralizadas pode ser especialmente desafiador em sistemas de auditoria externa descentralizados, devido a lacunas, sobreposição e duplicação nos mandatos dos órgãos de auditoria externa do sistema. Políticas descentralizadas são frequentemente políticas e serviços que afetam a população em seu dia-a-dia: educação, saúde, transporte, gestão de água, saneamento, etc. O baixo desempenho destas políticas tem repercussões imediatas para os cidadãos, assim um sistema de auditoria externa que funcione bem pode fazer uma diferença real e positiva na vida dos cidadãos.
Apesar de contarem com estruturas, funções e trabalho diferentes, EFSs e os órgãos regionais ou locais de auditoria externa têm por objetivo coletivo comum a promoção da responsabilidade e da boa governança (EUROSAI, 2020[13]). Em um contexto de descentralização, existem áreas compartilhadas de seu trabalho que oferecem oportunidades para uma coordenação e cooperação eficazes. Particularmente, as instituições de auditoria podem trabalhar em conjunto para auditar políticas prestadas através de mais de um nível de governo.
O objetivo é elaborar um quadro completo que forneça ao centro de governo os conhecimentos necessários para proporcionar o melhor resultado possível para os cidadãos. Cada entidade de auditoria externa possui uma peça do quebra-cabeça. A construção do quadro completo começa com a coleta e a montagem de todas as peças deste quebra-cabeça.
Construir um entendimento compartilhado entre as entidades de auditoria sobre os riscos da não entrega de resultados de políticas públicas pode ser um bom início para este esforço de colaboração. Após a elaboração de um mapa de risco compartilhado, as entidades de auditoria podem então trabalhar para uma seleção estratégica de auditorias, e assim ampliar o impacto de seu trabalho, coletiva e individualmente.
Ao melhorar a coordenação entre as instituições de auditoria externa através de uma abordagem comum baseada em risco para a seleção de auditorias (ver Quadro 1.5), as EFSs podem ajudar a enfrentar os desafios inerentes à descentralização, contribuindo, em última instância, para seu valor agregado. O Capítulo 2 descreve uma metodologia para a seleção de auditorias comuns através de uma avaliação de risco baseada em evidências.
Quadro 1.5. Seleção de auditoria pelas EFSs
As instituições de auditoria do setor público precisam determinar, caso a caso, que tipo de auditoria empregarão (desempenho, conformidade, financeira, etc.).
A fim de decidir sobre o programa anual de auditoria, as EFSs devem, de acordo com as Normas Internacionais de Auditoria, basear sua seleção de tópicos de auditoria em um processo de planejamento estratégico para analisar cada um dos tópicos potenciais, além de conduzir pesquisas para identificar riscos e problemas passíveis de auditoria. A norma ISSAI 3000 estipula, ainda, que técnicas tais como análise de risco ou avaliação de problemas podem ajudar a estruturar o processo de planejamento. Essas atividades, entretanto, precisam ser complementadas por um julgamento profissional para assegurar que refletem o mandato do EFS e que os tópicos selecionados são significativos e passíveis de auditoria.
O objetivo final do processo de seleção da auditoria é selecionar auditorias que cobrirão questões significativas e que provavelmente terão um impacto. Ter impacto refere-se à probabilidade de as auditorias melhorarem significativamente a condução das operações e programas governamentais, por exemplo, reduzindo custos e simplificando a gestão, melhorando a qualidade e o volume dos serviços públicos, ou melhorando a eficácia, o impacto, ou os benefícios para a sociedade.
Para aumentar a eficiência e o impacto coletivo do trabalho de auditoria, as auditorias realizadas por diferentes órgãos do sistema de auditoria externa devem ser estrategicamente alinhadas, na medida do possível, dadas as atribuições específicas e as obrigações legais de cada órgão de auditoria. Em vez de confiar na seleção de auditoria de cada entidade, os processos de seleção podem, idealmente, ser harmonizados sob uma direção estratégica coerente.
Além de reduzir a probabilidade de lacunas, sobreposição e duplicação do trabalho de auditoria – e aumentar o intercâmbio de conhecimentos – a coordenação entre instituições de auditoria externas também pode resultar em:
melhora e maximização da cobertura da auditoria, com um maior foco nas áreas de risco
auditorias mais bem informadas e, consequentemente, recomendações mais úteis em todos os níveis de governo
melhor compreensão de todas as partes sobre os resultados do trabalho umas das outras, o que pode ter um impacto em seus respectivos planos de trabalho e programas de auditoria futuros
auditorias mais eficientes, baseadas em planejamento e comunicação coordenados.
Para este fim, entidades de auditoria externa podem trabalhar no desenvolvimento de uma rede coordenada. O Capítulo 4 fornece orientações sobre como as instituições de auditoria externa podem elaborar e implementar tais redes.
Uma abordagem comum e coordenada baseada em risco para a seleção de auditorias é fundamental para superar os desafios da auditoria em um sistema de auditoria descentralizado. Esta é uma oportunidade para que as EFSs possam contribuir significativamente para melhorar o sistema de auditoria externa, não apenas conduzindo melhores auditorias, mas também assumindo o papel de liderança e apoiando melhorias estruturais do setor público, conforme exigido pelo Princípio 12 da INTOSAI sobre o Valor e os Benefícios das EFSs (INTOSAI, 2013[17]).
Desafios e oportunidades no Brasil
No Brasil, o tamanho e a complexidade do governo e a existência de múltiplos atores com poder de decisão nos três níveis de governo criam desafios para a manutenção da coerência e do desempenho efetivo das políticas públicas.
Conforme descrito anteriormente, o Brasil possui uma estrutura institucional e financeira altamente complexa e multinível. Esta arquitetura complexa, que pode apresentar desafios como lacunas, duplicação e sobreposição, pode dificultar o desempenho geral do sistema descentralizado. Além disso, o sistema de auditoria externa do país também é extremamente descentralizado, exacerbando os desafios para a execução descentralizada de políticas públicas. Dada tal "dupla descentralização", a colaboração por meio de uma seleção estratégica e do alinhamento de auditorias, incluindo a avaliação de questões de governança multinível, pode proporcionar uma solução para enfrentar os desafios.
O Brasil lida com grandes disparidades regionais. Quaisquer que sejam os indicadores socioeconômicos utilizados para avaliar esta disparidade, o padrão macrorregional é sempre o mesmo: as regiões norte e nordeste do país têm piores desempenhos, a região central tem resultados intermediários, e as regiões sul e sudeste têm os melhores desempenhos (Silva, 2017[18]). As principais políticas descentralizadas em educação, saúde e infraestrutura têm o objetivo de reduzir esta disparidade, mas a governança multinível altamente fragmentada representa um enorme desafio para a aplicação igualitária destas políticas e para a redução das desigualdades regionais.
Nas auditorias de desempenho dessas políticas, a perspectiva a partir do nível regional torna-se crucial. Ao selecionar auditorias em áreas de políticas descentralizadas, é fundamental ter-se uma visão da variação territorial das condições socioeconômicas e do desempenho dessas políticas. Sempre que disponíveis, as evidências em nível local podem fornecer essa percepção, quando coletadas e analisadas sistematicamente. Os TCs ocupam uma posição-chave para o fornecimento desta visão sobre as disparidades territoriais do desempenho das políticas públicas.
Esta é uma potencial força e oportunidade para o sistema descentralizado de auditoria externa no Brasil, desde que seja estabelecida forte colaboração estratégica entre os TCs. O Brasil pode se beneficiar a partir da elaboração de um mapeamento das políticas públicas e programas e de suas interações nos múltiplos níveis de governança. O TCU e os TCs podem desempenhar um papel importante na avaliação colaborativa do desempenho de políticas ou programas que são formuladas ou prestadas através de arranjos multiníveis.
Aprimorar a coordenação dos tribunais de contas e as auditorias de políticas descentralizadas: Principais prioridades
Em relação aos desafios e oportunidades descritos neste capítulo, há três áreas-chave prioritárias a serem trabalhadas.
A auditoria de políticas públicas descentralizadas requer uma forte colaboração e coordenação entre todos os órgãos de auditoria externa que auditam elementos da formulação e implementação de políticas públicas
As instituições de auditoria nacionais e subnacionais podem estabelecer colaboração e coordenação sistemáticas entre si, com o objetivo de fornecer conhecimento ao centro de governo e recomendar melhorias transversais para o desempenho e a relação custo-benefício das políticas públicas descentralizadas.
A colaboração entre tribunais de contas pode se concentrar na seleção estratégica de auditorias com base em evidências e riscos
As EFSs podem compartilhar conhecimento para permitir a seleção estratégica de auditorias em todo o sistema—em nível nacional e subnacional—visando alcançar um maior impacto, e ao mesmo tempo respeitando a posição e o mandato únicos de cada entidade. Como parte deste esforço, as EFSs podem desenvolver um método de avaliação de risco compartilhado e orientado para resultados estruturado com base em indicadores para facilitar a partilha de conhecimento e a seleção de auditorias, usando uma linguagem comum e desenvolvendo um mapa de risco comum.
Para assegurar que as auditorias levem em conta questões específicas da elaboração e execução de políticas públicas descentralizadas, as EFSs podem considerar sistematicamente fatores de governança multiníveis nas auditorias
Uma auditoria eficaz num contexto descentralizado exige que as EFSs levem em conta a governança em vários níveis para cada setor de política a ser analisado e auditado. Um referencial de avaliação de governança multinível pode ajudar as EFSs a adotarem uma abordagem estruturada para identificar os pontos fracos da governança multinível, particularmente ao conduzir auditorias de desempenho.
Os próximos três capítulos deste relatório detalham estas áreas prioritárias e recomendações específicas para o Brasil.
O capítulo 2 se concentra na seleção de auditorias estratégicas através de uma avaliação de risco baseada em evidências.
O capítulo 3 descreve o desenvolvimento de um referencial que possa servir de base comum para avaliar os pontos altos e baixos sobre governança multinível durante uma auditoria.
O Capítulo 4 descreve estratégias e estruturas para garantir colaboração entre entidades de auditoria externa na seleção estratégica de auditorias.
Referências
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[11] Bovens, M. (2007), “Analysing and Assessing Accountability: A Conceptual Framework”, European Law Journal, Vol. 13/4, pp. 447-468, http://dx.doi.org/10.1111/j.1468-0386.2007.00378.x.
[8] Diario Oficial da Uniao (2019), Decreto Nº 9.759, de 11 de Abril de 2019, http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/71137350/do1e-2019-04-11-decreto-n-9-759-de-11-de-abril-de-2019-71137335.
[13] EUROSAI (2020), “Taskforce Municipality Audit”, External Audit Systems Analysis, https://www.vkontrole.lt/tf/files/files/External%20Audit%20Systems%20Analysis_final_07-01(2).pdf (acesso em 20 de julho 2020).
[12] INTOSAI (2019), ISSAI 100- Fundamental principles of Public Sector Auditing, https://www.issai.org/pronouncements/issai-100-fundamental-principles-of-public-sector-auditing/.
[15] INTOSAI (2016), SAI Performance Measurement Framework 2016, https://www.idi.no/en/idi-cpd/sai-pmf.
[17] INTOSAI (2013), INTOSAI-P-12 The Value and Benefits of Supreme Audit Institutions – Making a difference to the lives of citizens, https://www.issai.org/pronouncements/intosai-p-12-the-value-and-benefits-of-supreme-audit-institutions-making-a-difference-to-the-lives-of-citizens/.
[16] INTOSAI (1977), The International Standards of Supreme Audit Institutions (ISSAI) 1. The Lima Declaration, https://www.issai.org/pronouncements/intosai-p-1-the-lima-declaration/.
[9] OCDE (2020), OECD Public Integrity Handbook, OECD Publishing, Paris, https://dx.doi.org/10.1787/ac8ed8e8-en.
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[14] OCDE (2019), “Making decentralisation work: A handbook for policy-makers”, in Making Decentralisation Work: A Handbook for Policy-Makers, OECD Publishing, Paris, https://dx.doi.org/10.1787/dd49116c-en.
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[10] OCDE-SIGMA (2017), The Principles of Public Administration: 2017 edition, OCDE, Paris, http://www.sigmaweb.org/publications/Principles-of-Public-Administration-2017-edition-ENG.pdf.
[18] Silva, S. (2017), “Regional Inequalities in Brazil: Divergent Readings on Their Origin and Public Policy Design”, EchoGéo 41, http://dx.doi.org/10.4000/echogeo.15060.
[5] Termeer, C., A. Dewulf and M. Lieshout (2010), “Disentangling Scale Approaches in Governance Research: Comparing Monocentric, Multilevel, and Adaptive Governance”, Ecology and Society, Vol. 15/4, http://dx.doi.org/10.5751/es-03798-150429.
[3] World Bank (2020), Decentralization & Subnational Regional Economics, http://www1.worldbank.org/publicsector/decentralization/what.htm (acesso em 24 de julho 2020).