O aumento da frequência e da intensidade de eventos relacionados aos recursos hídricos no Brasil, devido às mudanças climáticas, coloca a população em risco, reduz a confiabilidade na infraestrutura hídrica e tem consequências negativas para a segurança alimentar e energética. Em 2020, 1,1 milhão de pessoas foram afetadas por enchentes, cerca de 15 milhões, por secas, e um número maior, por efeitos negativos indiretos, como preços mais altos dos alimentos. Além disso, o esgotamento dos reservatórios hidrelétricos, iniciado em 2013, fez com que, em 2021, 213 milhões de pessoas, dependentes de energia hidrelétrica sofressem maior risco de interrupção no abastecimento de energia elétrica. Portanto, são necessárias políticas urgentes que garantam a resiliência hídrica e enfrente as consequências das incertezas climáticas.
A crise econômica causada pela pandemia de COVID-19 exerceu pressão adicional sobre a capacidade do Brasil de implementar políticas de recursos hídricos, de saneamento e de redução da lacuna de infraestrutura no país. Embora a economia brasileira tenha começado a se recuperar em 2021 (com crescimento projetado de 5,2%), foi duramente afetada pela COVID-19, contraindo-se 4,4%, acima da média mundial (-3,4%), em 2020. A pandemia evidenciou antigos desafios de saúde pública. De fato, a partir de janeiro de 2022, o Brasil tinha 2.899 por 1 milhão de óbitos relacionados à COVID-19, ficando em segundo lugar na região da América Latina e Caribe (LAC, sigla em inglês). Mais de 100 milhões de brasileiros não têm acesso a saneamento seguro, enquanto 21,6 milhões de pessoas usam instalações sanitárias inadequadas. Outras 2,3 milhões de pessoas usam fontes de água inseguras para consumo e higiene pessoal, enquanto cerca de 15 milhões de moradores urbanos não têm acesso à água potável segura e, em áreas rurais, cerca de 8 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada.
O Brasil criou diversos mecanismos regulatórios e de financiamento para responder aos desafios da segurança hídrica. Em 2019, o Plano Nacional de Segurança Hídrica (PNSH) definiu uma meta de investimento baseada em 114 ações a serem executadas até 2035. Essas ações deverão beneficiar 1/3 das 74 milhões de pessoas que vivem em áreas onde a oferta hídrica está em risco e que, provavelmente, sofrerão com a perda de produção industrial e agrícola, se nenhuma providência for adotada. O Programa de Segurança Hídrica (PSH), anexo ao Plano, prevê um total de R$ 27,6 bilhões em investimentos de capital e R$ 1,2 bilhão por ano, em média, para operação e manutenção de infraestrutura hídrica. Isso dobra os níveis atuais (R$12,94 bilhões por ano de 2013 a 2017 e R$13,7 bilhões em 2020, ou seja, cerca de 0,2% do PIB), ainda que os investimentos no setor de saneamento permaneçam menores do que em outros setores, como o elétrico (0,54% do PIB em 2017). Além disso, a nova Lei do Saneamento de 2020 definiu as condições para maior segurança jurídica e transparência com vistas a engajar o setor privado em projetos relacionados à infraestrutura hídrica com o objetivo de construir e manter serviços de saneamento em todo o País. Ao fazer isso, a lei amplia o papel da ANA, passando de gestora dos recursos hídricos para assumir, adicionalmente, a responsabilidade de definir normas e padrões de referência para os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário.
Este relatório fornece uma série de recomendações de políticas públicas e plano de ação feitos sob medida (anexo B) para que o Brasil passe da estratégia para a ação em três áreas principais:
Primeiro, mudar de uma abordagem baseada em riscos para uma abordagem de resiliência para lidar com incertezas futuras advindas das mudanças climáticas:
Criação de uma cultura onde a água seja considerada um recurso escasso e valioso, por exemplo, por meio do uso de tarifas com base geográfica (de escassez). As questões a serem levadas em consideração incluem: o grau de escassez hídrica; o nível de sensibilidade ambiental e o grau de estresse no ecossistema; a proporção de água utilizada que poderia ser reutilizada; e a qualidade de efluentes. Também é fundamental que se identifiquem formas de proteger domicílios de baixa renda e vulneráveis por meio de subsídios cruzados, tarifas sociais, apoio à renda, reduções ou descontos especiais. Uma cultura da água também pode ser criada por meio da instalação de equipamentos mais eficientes, aliada à educação e conscientização.
Uso de opções incrementais e escalonáveis para melhor gerenciar a demanda e a oferta de água, por meio do incentivo ao uso racional e à mudança de comportamento, ao mesmo tempo em que se adote tempestivamente uma gama de opções do lado da oferta.
Utilização da infraestrutura verde como alternativa flexível e econômica às soluções de engenharia rígidas para o desafio da segurança hídrica ao mesmo tempo em que se produzem resultados benéficos para a qualidade da água, para o ecossistema, para a gestão de risco de inundação e para as vazões dos rios.
Em segundo lugar, fazer com que as organizações de bacias hidrográficas forneçam e usem instrumentos econômicos para enfrentar os riscos hídricos, por meio de:
Adoção de sistema multinível de governança que assegure a gestão hídrica em escala de bacia, em coordenação com agências estaduais e o governo federal. Isso implica também avaliar se as instituições estão cumprindo seu mandato de observar possíveis lacunas (gaps) de governança e de planejar medidas para superá-las.
Envolvimento das partes interessadas nas discussões de gestão de recursos hídricos para garantir um processo equilibrado e representativo que leve em consideração ideias e opiniões diversas e atente, de modo especial, para o envolvimento dos municípios e das comunidades carentes/desfavorecidas.
Alocação de água onde houver maior carência e atribuição de valor à água por meio de instrumentos econômicos, tais como a cobrança pelo uso dos recursos hídricos. Esses instrumentos criam incentivos para reduzir a demanda hídrica e para alocar a água de maneira eficiente, enquanto se arrecadam fundos para financiar a infraestrutura e a gestão integrada dos recursos hídricos. Para melhorar a relação custo-benefício, as cobranças deveriam ser combinadas com outros instrumentos, tais como regimes de alocação de água, vazões fluviais ecológicas mínimas (regulação direta) e a promoção das melhores tecnologias disponíveis (medidas de informação).
Em terceiro lugar, acompanhar o desenvolvimento da infraestrutura com fiscalização e monitoramento eficazes por parte do regulador. Para que isso aconteça, a ANA, que está no centro da reforma da nova Lei do Saneamento, necessitará:
Instituir mecanismos eficazes de coordenação com as instituições infranacionais para assegurar que, na aplicação da nova lei, não haja nenhum conflito formal ou de percepção, nos diferentes níveis de governo, no que se refere à tomada de decisão. Deverá, ainda, avaliar impactos e fazer revisão sistemática do processo de implementação da lei.
Fortalecer mecanismos de engajamento das partes interessadas com o objetivo de aumentar o entendimento e o cumprimento das regras e das normas de referência, mas também deverá ampliar a conscientização a respeito das atividades do regulador para aumentar a aceitação pública.
Construir capacidades e competências adequadas ao regulador para que o novo mandato da ANA seja acompanhado de esforço concentrado que assegure financiamento, habilidades e capacidades adequados.