Este capítulo mergulha a fundo no caso específico da Bacia Hidrográfica do Rio Piancó-Piranhas-Açu como um estudo de caso para enfrentar desafios mais amplos de governança e financiamento na gestão de recursos hídricos no Brasil. Devido a suas características econômicas e hidrológicas, a Bacia Hidrográfica do rio Piancó-Piranhas-Açu é frágil para assegurar o abastecimento de água atual e futuro. Apesar da existência de estrutura institucional e jurídica robusta, as lacunas na implementação ainda não asseguram que arranjos de governança cumpram funções da gestão dos recursos hídricos. Este capítulo sugere opções para o aperfeiçoamento da governança multinível, em nível de bacia, bem como o uso de instrumentos econômicos na implementação do Projeto de Integração do Rio São Francisco (PISF), que já está levando água à bacia e trará mudanças substanciais para panorama da gestão dos recursos hídricos.
A Promoção da Resiliência Hídrica no Brasil
2. Fortalecendo a governança multinível e o uso de instrumentos econômicos na bacia hidrográfica do rio Piancó Piranhas-Açu
Abstract
Características hidrológicas da Bacia Hidrográfica do rio Piancó-Piranhas-Açu
A bacia hidrográfica interestadual do rio Piancó-Piranhas-Açu (PPA) cobre uma área de 46.683 km2 em um território semiárido da região Nordeste do Brasil (Figura 2.1). A bacia do PPA abriga 1,4 milhão de pessoas em 43.000 km2, em parte dos estados da Paraíba (60% da bacia) e do Rio Grande do Norte (40%) (IBGE, 2011[1]).
Devido a suas características socioeconômicas e hidrológicas, essa bacia é muito frágil para garantir o abastecimento de água atual e futuro. A hidroclimatologia da bacia é caracterizada por uma estação chuvosa que vai de janeiro a junho (a taxa pluviométrica anual varia entre 440 e 1.050 mm) e pela ausência de chuvas no restante do ano, combinada a uma seca plurianual, que ocorre periodicamente. De 2012 a 2020, a bacia viveu um de seus piores períodos de severa seca plurianual (de Sousa Freitas, 2021[3]). A maioria dos rios é intermitente. Assim, quase todo o abastecimento de água advém de diversos reservatórios que totalizam uma capacidade de armazenamento de 5.352 hm³. Alguns destes reservatórios operam para manter a vazão dos rios e servem como fonte de água para irrigantes, abastecimento público e outros fins.
Existem três reservatórios principais na bacia dos rios PPA, a saber o Curema-Mãe d'Agua (CMA, 1,160 hm3), o Armando Ribeiro Gonçalves (ARG, 2,400 hm3) e o Engenheiro Ávidos (EA, 400 hm3), correspondendo a 70% da capacidade de armazenamento de água superficial da bacia (5.659 hm3) (Figura 2.2). O CMA fornece água ao distrito de irrigação de Várzea de Souza (2.610 hectares de áreas irrigadas, além de abastecer duas cidades que totalizam 65.000 habitantes) e regulariza a vazão em uma porção do rio a jusante de 165 km, que serve como fonte de água a 465.000 habitantes e a mais de 4.000 hectares de área irrigada em 1.250 fazendas. O ARG é a fonte de água direta para extensos sistemas de tubulação, que fornecem água a muitas cidades, totalizando 400.000 habitantes, dentro e fora da bacia. Além disso, regulariza a vazão em uma área de 70 km a jusante, fornecendo água ao Distrito de Irrigação do Baixo Açu (2.400 hectares da área irrigada) e 3.766 hectares das fazendas irrigadas captam água do rio, e diversas fazendas de aqüicultura (principalmente produtoras de camarões), que totalizam 630 hectares em área de tanques para piscicultura. Em 2012, havia 54,4 mil hectares de terra irrigada, correspondendo a 1,3% da área de drenagem da bacia hidrográfica. As principais áreas de agricultura temporárias produzem soja e milho; enquanto as áreas de agricultura permanentes, banana e coco (ANA, 2016[2]).
Apesar da existência dos reservatórios, 60% (31 de 52) das unidades hidrológicas de planejamento1 na Bacia Hidrográfica do PPA apresentam desequilíbrio entre a oferta e a demanda (ANA, 2016[2]). Os recursos hídricos dos aquíferos da bacia são limitados (uma recarga anual de 458 hm3, equivalente a 8% da água armazenada nos reservatórios) e pouco utilizados (93 hm3 ou 20% da recarga anual). A irrigação corresponde a dois terços da demanda hídrica; a aquicultura, a 22%; o abastecimento público, a 7%; indústria e pecuária dividem os 4% restantes (ANA, 2016[2]). Há falta de investimentos em segurança hídrica (por exemplo: represas, reservatórios, coleta e tratamento) devido à capacidade limitada de investimento na bacia. Consequentemente, são necessárias medidas focadas na melhoria da resiliência da bacia, na resolução de questões de abastecimento e poluição e na concorrência entre os consumidores.
A agricultura irrigada é uma das principais atividades econômicas e tem sido chave no desenvolvimento regional desde a década de 1970. A área irrigada é de aproximadamente 81.000 hectares (IBGE, 2006[4]). Os irrigantes são os principais consumidores de água (65,7%), seguidos da aquicultura (23,6%), do consumo humano (7,6%), da indústria (1,6%) e da pecuária (1,5%) (Figura 2.3).
A poluição da água é um desafio significativo para a Bacia Hidrográfica do Rio Piancó-Piranhas-Açu devido ao tratamento insuficiente de esgoto e escoamento de fertilizantes (ANA, 2014[5]; ANA, 2016[7]; IBGE, 2006[4]; IBGE, 2011[1]). Aproximadamente, 96% da população urbana têm acesso à água potável no Estado da Paraíba; e 92%, no Estado do Rio Grande do Norte. No entanto, as taxas de coleta de esgoto são muito menores no Estado da Paraíba (2,46%) e no Estado do Rio Grande do Norte (13,95%)(ANA, 2014[5])(CBH PPA, n.d.[6]). A principal causa da poluição da água nessa área é a falta de tratamento adequado de águas residuais, que é de responsabilidade dos municípios. Os municípios enfrentam limitações (humanas, técnicas e financeiras) e, apesar de seu papel importante na gestão do saneamento, incluindo licenciamento ambiental e gestão de resíduos sólidos, eles raramente participam de reuniões dos Comitês de Bacia Hidrográfica. O fraco engajamento dos municípios na gestão dos recursos hídricos, que é comum no Brasil, prejudica qualquer visão estratégica para a Bacia. Além disso, a cultura de bacia permite o uso dos rios para despejo de efluentes líquidos e sólidos. Há programas, em nível federal, para apoiar os municípios no setor de saneamento, que é de sua responsabilidade.
Aumentando a segurança hídrica por meio do Projeto de Integração do São Francisco
Um projeto ambicioso de infraestrutura
A transposição do rio São Francisco, conhecida como Projeto de Integração do rio São Francisco (PISF), reduzirá a incerteza sobre a disponibilidade de água no PPA. Em 2007, o Brasil lançou o PISF e começou a construir sua infraestrutura para impulsionar o desenvolvimento econômico no nordeste do país, incluindo a bacia do PPA. O PISF é a obra de infraestrutura hídrica brasileira mais cara atualmente, com o valor estimado podendo alcançar R$12 bilhões (USD 5,8 bilhões) (da Silva Santos, 2021[8]). Programado originalmente para ser concluído em 2011, o projeto teve diversos atrasos e aumentos de custos. Atualmente, em fase final de execução, o projeto tem como objetivo desviar 1,4% do maior rio localizado exclusivamente no Brasil para as zonas semiáridas do nordeste, que abrigam 29% da população brasileira, mas possuem somente 3,3% dos recursos hídricos do país. Visa também a ajudar a rede de infraestrutura hídrica do Nordeste a operar de maneira mais integrada (por isso, o nome do projeto utiliza o termo “integração” e não “transposição”).
O rio São Francisco deverá fornecer água a algumas das áreas mais secas da região semiárida no Nordeste. Seis bacias hidrográficas se beneficiarão do projeto: Jaguaribe (Ceará), Piranhas-Açu e Apodi (Rio Grande do Norte), Paraíba, Moxotó e Brígida (Pernambuco). De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Regional, o PISF suprirá a demanda hídrica dos municípios da região semiárida do Agreste Pernambucano e da região metropolitana de Fortaleza e solucionará os problemas causados pela escassez hídrica e por secas severas.
O PISF consiste em dois sistemas independentes de canais, tubulações e aquedutos (o eixo norte e eixo leste) que se estendem por aproximadamente 720 km (Figura 2.4). O eixo norte transfere as águas do rio São Francisco às bacias dos rios Jaguaribe (Ceará), Piranhas-Açu (Rio Grande do Norte) e Apodi-Mossoró (Rio Grande do Norte). O eixo leste conecta-se à bacia do rio Paraíba (Paraíba) e a algumas bacias de Pernambuco (através do Ramal do Agreste, o maior projeto de Infraestrutura hídrica de Pernambuco). O eixo leste foi o primeiro a entrar em operação, em 2017, e atualmente fornece água a cinco reservatórios na bacia do rio Paraíba (de Lucena Barbosa et al., 2021[9]).
O projeto também aborda importantes questões, como a poluição e a contaminação da água doce, para os quais a cobrança pelo uso de recursos hídricos pode contribuir. O projeto está sendo executado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional com um orçamento de US$3 bilhões. A receita proveniente da cobrança pelo serviço de adução de água bruta pode financiar a sua operação e sua manutenção. Entretanto, com o progresso de sua implementação, o tratamento de questões de governança dos recursos hídricos, no âmbito da bacia hidrográfica do rio Piancó-Piranhas-Açu, torna-se ainda mais urgente, na medida em que o PISF trará mudanças substanciais para a gestão hídrica. Além disso, será necessário aprimoramento institucional das agências de governo, dos comitês de bacia e das instituições operacionais responsáveis pelo monitoramento hidrológico, controle do uso da água e operações dos reservatórios para lidar com essa nova realidade.
Para uma execução bem sucedida do Projeto de Integração do Rio São Francisco
O PISF está em funcionamento e começa a evidenciar questões relacionadas a operação e manutenção (O&M) das principais infraestruturas hídricas. O governo federal foi responsável pelo financiamento e pela entrega da fase de construção, pelo estabelecimento do sistema de gestão e pela definição do operador em nível federal. Os estados são responsáveis pela operação, gestão e uso da água. A ideia era de que os estados pudessem cobrar dos beneficiários, de modo a financiar os custos de operação. Por meio de dispositivo contratual, as agências reguladoras dos estados (AESA e IGARN, que são os operadores estaduais), na Paraíba e no Rio Grande do Norte, deveriam cobrar dos usuários pelo serviço de adução de água bruta e pagar ao operador federal do PISF (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba - CODEVASF) pela água recebida.. Além disso, os custos com energia são representativos na despesa operacional total, sendo assim, é preciso buscar eficiências operacionais e alternativas para redução desses custos. Para os demais reservatórios federais, na bacia, a operação é realizada pelo DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca) que é responsável por sua operação e manutenção.
A execução bem sucedida do PISF exige um arranjo institucional que permita a coordenação das funções federais e estaduais, a gestão eficaz dos recursos transferidos e um sistema eficiente e seguro de financiamento. A operação comercial completa ainda não começou, portanto, a resolução das questões pendentes é urgente.
Na esteira dos princípios de boas práticas (Quadro 2.1), deve considerar-se o seguinte:
Formalização dos arranjos institucionais para a tomada de decisão, para a regulação e a gestão do sistema PISF, de modo que as funções e as responsabilidades estejam claras, e mudanças na demanda e na disponibilidade hídrica sejam geridas de maneira sustentável. O projeto e sua operação exigem a coordenação, em todos os níveis de governo com a participação dos beneficiários e de outras partes interessadas. O Société du Canal de Provence (SCP), na França, traz exemplo inspirador de um arranjo de governança possível para o PISF. O SCP é uma sociedade de economia mista, criada em 1957, como uma Companhia de Desenvolvimento Regional, que se beneficia de uma estrutura estável de acionistas, com mais de 80% das ações sendo de propriedade das autoridades locais. Em 1963, o SCP assinou um contrato de concessão de 75 anos para construção e operação do Canal da Provença. Dentro da estrutura de concessão concedida pela Région Sud Provence-Alpes-Côte d’Azur, a tarefa preliminar do SCP era controlar e garantir o abastecimento seguro de água para a Provença. Para tanto, projetaram uma moderna rede que garantisse acesso à água para todos os consumidores e usos, e, atualmente, a SCP continua desenvolvendo e gerindo esta rede. O sistema do Canal de Provence foi concebido para permitir sua adaptação à demanda, mantendo, assim, a adução da água ao mínimo.
Esclarecimento das metas e dos objetivos do PISF, e estabelecimento de programa de comunicação e engajamento para os beneficiários, de modo que a base para a operação e financiamento esteja clara para todos. O objetivo do projeto é o desenvolvimento regional. Então, deve visar a aumentar o bem-estar, disponibilizando água para apoiar o crescimento econômico. O PISF ajudou a unir vários estados e os aproximou da ANA. Há discussões rotineiras sobre os desafios, mas até o momento, não foram encontradas soluções para resolvê-los, o que sugere que o formato atual para o diálogo necessita ser repensado, talvez por meio de um laboratório de idéias (think tank). As metas do PISF, especificamente, precisam ser acordadas em relação aos beneficiários prioritários e aos objetivos estratégicos para a região. Em última análise, o diálogo deverá contribuir para a sustentabilidade financeira do projeto, partilhando custos e benefícios entre os beneficiários. A experiência internacional tem demostrado que a operação de projetos de transposição precisa ser considerada dinamicamente, para que possa responder a mudanças na demanda, mudanças climáticas, eventos climáticos extremos e impactos ambientais. Estas questões tornam imperativo que os objetivos do PISF sejam revistos e regras operacionais flexíveis sejam estabelecidas de modo a não travar o sistema com processos rígidos e insustentáveis. Na Colômbia, campanhas para mudança comportamental no Valle de Cauca têm contribuído para duplicar o número de usuários a jusante por meio de medidas de conservação. Quatorze equipes de funcionários da autoridade ambiental local treinaram líderes comunitários em gestão de recursos naturais, marketing social e planejamento de campanha, e, ao mesmo tempo, capacitaram-nos a fim de criar confiança em diferentes partes interessadas. Como resultado, aproximadamente 1.700 hectares de floresta agora são protegidos voluntariamente por fazendeiros da região. O Valle de Cauca ultrapassou sua meta anual de conservação, as taxas de desmatamento caíram para abaixo da média nacional, e suas bacias apresentam tendências positivas nos índices de qualidade da floresta e da água.
Avaliação do PISF quanto ao risco, resiliência e incertezas usando cenários para diferentes níveis de demanda e disponibilidade hídrica, diante das mudanças climáticas e em prazos compatíveis com a vida útil esperada da infraestrutura hídrica (ou seja, pelo menos 50 anos). Considerar como uma carteira mais integrada de opções, tal como maior utilização da gestão da demanda, redução de vazamentos, reuso de efluentes, dessalinização ou águas subterrâneas, poderia ajudar na gestão de riscos e incertezas. Como no caso do Canal da Provença e sua infraestrutura, o foco é no lado da oferta, com investimentos planejados há décadas (se não séculos), e não na demanda (eficiência hídrica, redução do uso da água). Entretanto, dadas as soluções técnicas disponíveis atualmente e a conscientização crescente, incluindo no setor agrícola, deve-se ponderar sobre um deslocamento da gestão do lado da oferta para o da demanda.
Início de um programa de engajamento e conscientização para que as boas práticas sobre regras de acesso e cobrança estejam estabelecidas, quando a operação começar de fato. O PISF não oferecerá água gratuita ilimitadamente. As discussões sobre como deveria ser a estrutura de tarifa perfeita arriscam impedir a implementação de alguma forma de cobrança. Existe a percepção de que as comunidades que desfrutam desse benefício acreditam que a água está disponível para elas a custo zero, o que não é verdade.
Estabelecimento de regras de acesso ao recurso, apoiadas por um sistema de licenças e monitoramento de conformidade, a fim de encorajar os usuários a operar de forma eficiente e minimizar o desperdício. Essas questões são interligadas e é essencial que haja diálogo com todas as partes interessadas a fim de alcançar uma definição sobre arranjos de governança e financiamento. Se essas questões não forem resolvidas, o resultado será a falta de receita para operação e manutenção (O&M), deterioração das instalações e falha na esperada entrega dos benefícios econômicos e do bem-estar desse grande projeto.
Utilização das cobranças pelo uso de recursos hídricos para demonstrar que a água tem valor e que há custos para a sua disponibilização e manutenção das instalações que proporcionam sua distribuição. Existem custos fixos em todos os grandes projetos. Há também custos variáveis em razão de flutuações na demanda que devem ser financiadas por aqueles que se beneficiam de uma maior segurança no fornecimento ou de uma nova fonte. Os beneficiários são os consumidores de água dos municípios, que devem pagar uma tarifa realista pelo serviço de abastecimento de água, o que está sujeito a salvaguardas para aqueles com menor poder aquisitivo. O PISF precisará operar em capacidade máxima para alcançar todas as áreas com potencial de irrigação. Acredita-se que os usuários aparecerão quando a água for disponibilizada.
Desenvolvimento de programa para o monitoramento técnico do desempenho do PISF e outros grandes projetos para revisar as regras de controle, caso necessário e para informar cronogramas e exigências orçamentárias para a manutenção rotineira e preventiva, de modo que as perdas sejam minimizadas e todas as partes do sistema de transposição operem como projetadas. Deve-se monitorar continuamente o sistema quanto aos impactos ambientais, hidrológicos, socioeconômicos e regionais para que as regras de operação possam ser modificadas para reduzir impactos adversos e imprevistos. Como em todos os grandes projetos, é essencial que haja monitoramento contínuo do desempenho para que as regras de controle possam ser revistas e ajustadas, quando necessário, com vistas a assegurar que estejam funcionando como planejado e de modo que a manutenção rotineira e preventiva possa ser programada eficientemente. O projeto foi elaborado com a expectativa de que, ao aumentar a segurança hídrica, a demanda se materializasse para aproveitar os recursos hídricos adicionais. Uma vazão média de até 26,4m³/s é garantida para abastecimento humano e animal. Se a água não for toda consumida, o excedente pode ser alocado para outras finalidades. A depender do nível na barragem de Sobradinho, até 127 mm³/s podem estar disponíveis. A distribuição das vazões entre os diferentes tipos de usuários e estados e as tarifas a serem cobradas estão especificadas no Plano de Gestão Anual, o PGA, aprovado pela ANA. Sem controles e regulamentações rígidos de alocação formal nem fiscalização para minimizar o uso ilegal, existe o risco de expansão descontrolada de demanda, que impactará o uso contratado e o prioritário. Entretanto, o incremento no uso acarreta potencial aumento de receita para a cobertura dos custos, embora isso seja contrabalançado pelo aumento dos custos operacionais (primariamente de energia). O exemplo da transposição de Tejo-Segura, na Espanha, demonstra que os impactos ambientais, somente após muito tempo, podem se manifestar. Necessita-se, portanto, de um compromisso de monitoramento de longo prazo para a compreensão dos efeitos em vazões, qualidade da água e ecossistemas.
Quadro 2.1. A experiência internacional de grandes projetos de transposição de águas
Transposição de águas na Espanha
A transposição do Tejo-Segura é um grande projeto que liga o reservatório de Bolarque no rio Tejo, na Espanha central, ao reservatório de Talave no Segura, no sudeste seco do país. Tem 292 quilômetros de extensão, com a vazão máxima de transferência de até 33 m³/s. Seu traçado foi baseado na série de vazões do rio entre 1958-79, que sugeria que até 1.000hm³/ano era possível. No entanto, desde 1979, as vazões da bacia doadora diminuíram 47%, e o volume que se pensava estar disponível para transferência foi reduzido para 600 hm³/a. Na prática, as transferências tiveram uma média de apenas 351 hm³/a. Um terço da água é utilizada para abastecimento público e o restante, para irrigação. A evaporação e outras perdas somam aproximadamente 20 hm³/a.
Apesar de seus benefícios econômicos na bacia de Segura, a transposição resultou em impactos adversos significativos nas bacias doadoras e receptoras. No Tejo, houve grandes mudanças na dinâmica do rio, com aumento da erosão e redução da qualidade da água. Essa deterioração despertou interesse social e político. Em Segura, os ecossistemas foram impactados pela introdução de espécies não-nativas de peixes que estão dominando as nativas. Além disso, o aumento na irrigação fez com que os níveis das águas subterrâneas aumentassem e ficassem cada vez mais poluídas por nutrientes. Estes impactos provocaram discussões sobre como melhor gerir grandes transposições, e a necessidade de contínua adaptação.
Esta experiência nos traz algumas lições importantes que são transferíveis ao PISF:
A viabilidade da transposição deve ser testada sob diferentes cenários de índices pluviométricos e socioeconômicos.
Transposições podem criar uma escala de impactos nas bacias afetadas, que devem ser identificados como parte da avaliação ambiental para o projeto. Caso se materializem após a construção e durante a operação, impactos devem ser tratados e minimizados.
Transposições são muito sensíveis às mudanças climáticas e aos deslocamentos na dinâmica social.
A cooperação interadministrativa eficaz é essencial para a operação sustentável da transposição.
Infraestrutura hídrica de larga escala no Reino Unido
No Reino Unido, há diversas transposições em funcionamento. Algumas datam do fim do século XIX e abastecem cidades no norte e no oeste do país. Estes recursos foram financiados, em sua maioria, pelos municípios que encomendaram as obras, mas os custos operacionais e de manutenção são agora de responsabilidade das companhias privadas de água que assumiram os encargos do setor público. Seus gastos foram inteiramente recuperados pela cobrança aos consumidores. Em alguns casos, o regulador de recursos hídricos e ambiental, que tem papel similar ao da ANA, é responsável pela operação e pela manutenção nos locais onde as instalações beneficiam múltiplos setores. Nestes casos, seus custos são inteiramente cobertos pelas cobranças impostas aos adutores, que pagam uma sobretaxa pelo benefício da adução da água a partir de um sistema fluvial regulado.
Nos últimos 40 anos, nenhuma grande infraestrutura de abastecimento de água foi encomendada; qualquer proposta nesse sentido foi objeto de forte oposição de comunidades locais e ONGs verdes. Entretanto, uma seca severa, em 2010-12, que ameaçou a segurança hídrica de Londres, levou ao reconhecimento de que investimentos eram necessários. As companhias privadas de água colaboraram para desenvolver um plano nacional de segurança hídrica para a Inglaterra. Os reguladores e o governo deram a orientação de que seria necessário adotar uma dupla abordagem e combinar medidas de gestão de demanda com o desenvolvimento de recursos, levando-se em conta os impactos potenciais das mudanças climáticas na disponibilidade hídrica, bem como as necessidades ambientais de vazões e demandas de outros setores. O plano inclui programas ambiciosos para a eficiência hídrica e controle de vazamentos, bem como uma ampla gama de projetos, como maior conectividade dentro e entre companhias, barragens, transposições, reuso de efluentes, águas subterrâneas e dessalinização.
Criou-se, em cada região, um grupo para tratar de recursos hídricos e para unir todos os setores e as partes interessadas para discutirem desafios econômicos, sociais e ambientais. Esses grupos, oportunamente, podem apoiar a gestão operacional dos recursos, a exemplo do Comitê Consultivo, há muito estabelecido para o rio Dee, no norte do País de Gales. Esse grupo foi estabelecido por lei para supervisionar a operação de uma série de barragens que fornecem vazão regularizada ao rio Dee. Esse rio suporta a adução, por meio de três companhias, para o abastecimento público, bem como para a navegação, a irrigação e a indústria. O rio Dee também é importante por sua ecologia e sua pesca, e as regras operacionais asseguram que as necessidades ambientais de vazão sejam priorizadas. Existem regras para a operação do sistema durante secas, com o impacto compartilhado pelos diferentes setores. No caso de uma seca mais severa que a prevista, o Comitê envida esforços para chegar a um consenso sobre como se devem operar as limitações em adução.
O rio Dee e os sistemas similares trazem idéias de como os novos projetos devem ser custeados e operados. O desafio imediato é de como a construção de qualquer novo projeto deve ser financiada. Com o setor hídrico privatizado, é improvável que se disponha de financiamento governamental. Por conseguinte, caberá às próprias empresas levantar capital próprio ou de um terceiro investidor para encampar o projeto e conseguir um retorno dos beneficiários. Para qualquer uma destas opções, é necessário ter a segurança de uma base de receita estável e adequada para pagar os juros dos empréstimos e gerar retorno sobre o capital. Também é importante um regime regulatório estável, operado com o apoio explícito do governo, a fim de dar confiança a investidores potenciais. Inversamente, os operadores necessitarão de flexibilidade para otimizar o uso das instalações. Nos locais em que os projetos também trazem benefícios ambientais, como provavelmente é o caso na Inglaterra, o regulador ambiental poderá possivelmente financiar uma parcela dos custos envolvidos.
A estratégia para o Rio Danúbio
O Rio Danúbio é o segundo rio mais longo da Europa, com uma bacia que inclui 19 países da Europa Central e Oriental, o que significa que é a bacia hidrográfica mais internacional do mundo. É importante para a navegação e para a geração de energia hidrelétrica, além de ser uma importante fonte de água potável. É, também, o habitat de uma espécie de esturjão, criticamente ameaçada de extinção, que necessita migrar a montante para se reproduzir. As instalações de energia hidrelétrica e outras barreiras, aliadas à superexploração da pesca, resultaram na considerável diminuição dos cardumes desse peixe.
O impacto ecológico da energia hidrelétrica tem aumentado as tensões entre interesses conflitantes e resultado em mudanças na concepção de políticas referentes ao uso de barragens para o abastecimento de água e energia hidrelétrica. No ano de 2000, a Comissão Internacional para a Proteção do Rio Danúbio (ICPDR, sigla em inglês) foi contratada para a implementação de todos os aspectos transfronteiriços do Marco Diretivo da Água e, em 2007, para as Diretivas sobre Inundações. Seu objetivo é preservar os recursos hídricos do Danúbio para as gerações futuras, proteger a qualidade da água e a ecologia, e minimizar o impacto das inundações.
A ICPDR iniciou diálogo para desenvolver um conjunto de Princípios Diretores para o Desenvolvimento Sustentável da Energia Hidrelétrica na Bacia de Danúbio. Montou-se uma estratégia, que inclui a identificação dos trechos do Danúbio que devem ser mantidos livres de projetos de energia hidrelétrica, e aqueles com probabilidade de impacto mínimo. Onde as estruturas existentes são adaptadas ou melhoradas, medidas devem permitir a passagem dos peixes.
Embora a disponibilidade hídrica na bacia do Danúbio ainda não tenha sido afetada significativamente pelas mudanças climáticas, provavelmente haverá impactos significativos na disponibilidade e na demanda de água (e na navegabilidade) no futuro. Isso provavelmente aumentará as pressões dos irrigadores e do abastecimento nas barragens e nos reservatórios. Além disso, há necessidade de redução das taxas de adução a fim de proteger fluxos ecológicos. As taxas de vazamentos em alguns países dentro da bacia chegam a 75%, então mitigar essas perdas, bem como melhorar a eficiência do uso em outros setores, como a irrigação, pode beneficiar o rio significativamente.
Espera-se, consequentemente, que o próximo Plano de Bacia para o Danúbio (2021-2027) trate e harmonize as questões de escassez hídrica e os impactos ambientais das barragens e dos reservatórios.
Fonte: OECD/ANA(2019-21[11]),“Oficinas de Governança dos Recursos Hídricos".
Criando governança dos recursos hídricos apropriada na Bacia Hidrográfica do Rio Piancó-Piranhas-Açu
Esta seção descreve oportunidades e recomendações baseadas em estruturas normativas, estudos e relatórios da OCDE sobre governança e gestão de recursos hídricos, bem como sobre as melhores práticas internacionais.
Adotando um arranjo de governança que garanta a gestão de recursos hídricos na escala apropriada e que promova a coordenação
A bacia do PPA cruza os estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Desde 2009, um único Comitê de Bacia Hidrográfica (CBH) governa a bacia do PPA, como acordado pelo governo federal e pelos dois estados. Os estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte possuem Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos (CERH), Secretarias estaduais e Agências Reguladoras - a Agência Executiva de Gestão de Águas do Estado da Paraíba (AESA) e o Instituto de Gestão das Águas do Estado do Rio Grande do Norte (IGARN). Mapear quem faz o que é o primeiro passo para representar a atribuição de papéis e responsabilidades em diferentes níveis de governo e entre funções para a gestão de recursos hídricos dentro da bacia (Figura 2.5).
Funções e responsabilidades entre os níveis do governo são alocadas da seguinte forma:
Nível federal
Conselho Nacional dos Recursos Hídricos (CNRH) tem poderes deliberativos e é responsável pela aprovação do Plano Nacional de Recursos Hídricos, e pela definição de diretrizes orientadoras gerais para os instrumentos de gestão hídrica, incluindo outorgas de uso e cobranças pelo uso de recursos hídricos.
A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) é responsável pelas outorgas de direito de uso de recursos hídricos no âmbito dos rios federais. É também encarregada do monitoramento hidrológico e dos reservatórios, monitoramento do uso da água, controle e fiscalização e projetos de gestão hídrica em nível federal.
Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) se destaca como o fornecedor principal da infraestrutura hídrica, responsável pela formulação e pela implementação das políticas públicas. Financia, também, novos sistemas hídricos e barragens.
O Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) é uma instituição do Governo Federal que faz a gestão de 321 reservatórios no nordeste do Brasil. Alguns desses reservatórios estão situados na Bacia Hidrográfica do rio Piancó-Piranhas-Açu e fornecem 70% da água superficial da bacia.
A Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF) é a atual operadora federal do PISF.
Nível estadual
A Secretaria Estadual do Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Ciência e Tecnologia da Paraíba (SEMARH/PB) e a do Rio Grande do Norte (SEMARH/RN) são responsáveis pela formulação e pela execução da política de recursos hídricos e pelo financiamento de grandes projetos de infraestrutura hídrica em nível estadual. Essas secretarias controlam também os reservatórios construídos pelo estado.
A Agência Executiva de Gestão das Águas do Estado da Paraíba (AESA) e o Instituto de Gestão das Águas do Estado do Rio Grande do Norte (IGARN) concedem outorga para uso de recurso hídrico em águas estaduais. São também responsáveis pelos monitoramentos hidrológicos dos reservatórios e do uso da água, pelo controle e pela fiscalização, e pelos projetos de gestão de recursos hídricos em nível estadual. A AESA opera, também, sistemas hídricos estatais.
O Conselho Estadual de Recursos Hídricos da Paraíba (CERH/PB) e o do Rio Grande do Norte (CERH/RN) têm poderes deliberativos e são responsáveis pela aprovação dos Planos Estaduais de Recursos Hídricos e pela definição de diretrizes gerais de instrumentos de gestão de recursos hídricos, incluindo outorga de uso da água e cobranças pelo uso de recurso hídrico, em nível estadual.
Nível de bacia
O Comitê de Bacia Hidrográfica do Piancó-Piranhas-Açu (CBH-PPA) foi criado em 2006 e iniciou suas operações em 2009. O CBH-PPA é um órgão colegiado que reúne 40 representantes dos setores do uso da água, agências governamentais e sociedade civil. O Comitê é responsável por promover discussões a respeito de todas as questões hídricas, aprovar o Plano de Gestão de Bacia, estabelecer prioridades de uso da água, aprovar mecanismos de cobrança pelo uso de recursos hídricos e cronograma de implementação.
Desde o fim de 2016, um Escritório Técnico contratado pela ANA foi fundado na bacia hidrográfica do PPA como parte da implementação do plano de bacia. Esse Escritório tem desenvolvido diversas funções operacionais para apoiar a gestão de recursos hídricos e as agências governamentais.
O Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do rio Piancó-Piranhas-Açu é uma referência para o Comitê de Bacia Hidrográfica e para as agências de gestão de recursos hídricos de rios federais e estaduais (veja a seção seguinte). Aprovado em 2016, o plano tem um orçamento de R$ 150 milhões para os primeiros cinco anos, e prevê três tipos de ações focadas na melhoria da segurança hídrica e da qualidade da água, devido ao baixo nível de infraestrutura de saneamento. As ações serão implementadas pelo Comitê de Bacia Hidrográfica, ANA, AESA e IGARN. O plano de recursos hídricos da bacia hidrográfica do rio PPA foi estendido até 2021 e sua revisão está em andamento com vigência de 5 anos a partir de 2022. As principais limitações que dificultam a implementação do plano de recursos hídricos da bacia hidrográfica do PPA são: (1) o orçamento da ANA é a única fonte de financiamento para o CBH na ausência de um mecanismo de financiamento baseado na cobrança aos usuários de água da bacia, e (2) as medidas da bacia hidrográfica do PPA devem estar alinhadas com as políticas de recursos hídricos nos níveis estadual e municipal.
Nesse contexto, as funções e as responsabilidades necessitam ser definidas e alocadas claramente commecanismos sólidos de coordenação. A governança multinível exige forte articulação entre atores e objetivos. Necessita, também, de mecanismos robustos de participação de modo a assegurar que todas as entidades estejam envolvidas ativamente. A fraca participação dos municípios na gestão de recursos hídricos advém, inicialmente, da particularidade do "duplo domínio”. A Constituição Brasileira divide a titularidade e as competências sobre recursos hídricos entre a União (para os rios que cruzam limites estaduais e transfronteiriços) e os estados (todo os demais rios), o que dificulta uma visão estratégica para a bacia do PPA.
Atualmente, está em discussão na bacia do PPA a alternativa de manter as agências estaduais existentes ou de criar uma nova instituição para a gestão da água (isto é, uma Agência de Águas do PPA). Até certo ponto, o problema não é sobre a estrutura institucional, mas, sim, sobre o cumprimento eficiente das funções de gestão da água (quantidade, qualidade, defesa contra inundações, gestão de esgotos e tratamento de águas residuais e abastecimento de água potável). Assim, é importante assegurar que o projeto de governança escolhido disponha das funções e dos poderes necessários para cumprir sua missão na escala apropriada. Tais como:
A utilização das estruturas existentes poderia ser mais eficiente. Na França, por exemplo, as Agências de Águas, criadas em 1964, inicialmente, enfrentaram problemas para contratar pessoal competente e adequado, o que afetou sua capacidade de cumprir suas missões. Dificuldades similares estão presentes na bacia hidrográfica do PPA porque há falta de pessoal na gestão estadual de recursos hídricos e nas agências ambientais, o que prejudica a capacidade operacional. Criar uma nova instituição poderia agravar ainda mais essa situação. Além disso, as instituições existentes encarregadas da gestão de recursos hídricos nos estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte apresentam muitos níveis de responsabilização, o que é considerado positivo.
Encontrar a menor escala apropriada para cumprir eficientemente as funções da gestão de recursos hídricos pode ser um princípio a ser seguido. Embora cada país tenha suas próprias particularidades, seguir o princípio da subsidiariedade pode ser um ponto de referência.
Avaliar se as instituições em nível de bacia estão cumprindo seu mandato de identificar lacunas (gaps) e planejar medidas para superá-las. Um exemplo é a ferramenta de autoavaliação usada na Tanzânia para medir o desempenho das nove diretorias de bacias hidrográficas que executam a Gestão Integrada de Recursos Hídricos em nível de bacia. As diretorias de bacias são unidades administrativas descentralizadas, que, juntamente com os comitês de bacia (catchment committees) e as associações de usuários dos recursos hídricos, compõem o arcabouço institucional para a gestão dos recursos hídricos. A Estrutura de Avaliação de Desempenho é uma ferramenta de autoavaliação que apoia as diretorias de bacia para avaliar, regularmente, seu desempenho de acordo com seu mandato institucional. A ferramenta foi desenvolvida pelo Ministério de Água e Irrigação, com o apoio da Sociedade Alemã de Cooperação Internacional (Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit, GIZ). O ministério fornece apoio às diretorias enquanto administra a Estrutura de Avaliação de Desempenho, o que constitui também excelente oportunidade para o ministério mapear a robustez e as debilidades de cada diretoria.(OECD, 2018[13])
Fortalecendo o engajamento das partes interessadas
Fortalecer o engajamento das partes interessadas em nível de bacia é vital para promover contribuições informadas e orientadas a resultados com vistas à formulação e à implementação de políticas de recursos hídricos. As comunicações formais e informais são importantes e devem ocorrer de modo regular e permanente. De forma tentativa, a OCDE (2015[14]) descreve algumas das vantagens e dos inconvenientes resultantes dos mecanismos formais e informais de engajamento (Quadro 2.2).
Os mecanismos formais, tais como associações de usuários de recursos hídricos e organizações de bacias hidrográficas, são frequentemente baseados no princípio da democracia representativa, o que lhes confere legitimidade. Entretanto, podem ser percebidos como de visão única quando focam apenas nos objetivos de um só grupo de interessados. As organizações de bacias hidrográficas podem ser capturadas quando as discussões e as decisões são monopolizadas pelos interesses de determinados grupos. Podem também gerar tensões do tipo agente-principal (principal-agent tensions), nas quais a pessoa que se senta à mesa manifesta seus próprios interesses, ao invés de defender o grupo que representa. Esta deve ser uma preocupação ao se selecionar partes interessadas para participar de diretorias consultivas, grupos de trabalhos ou assembleias.
A natureza relativamente informal das reuniões e das oficinas (workshops) pode fomentar a deliberação e criar sentimento de união. Esses eventos proporcionam um clima mais aberto, o que faz com que os participantes se mostrem mais dispostos a discutir problemas e maximizem diálogos que não surgiriam por meio de outros mecanismos. Por exemplo, as reuniões e as oficinas são flexíveis em relação ao cronograma e à escala (das reuniões comunitárias às conferências internacionais) e podem ser aplicadas a uma gama de problemas (por exemplo, da discussão sobre um projeto de esgoto municipal ao debate sobre acordos de gestão de bacia transfronteiriça). Elas oferecem oportunidades para que qualquer um expresse suas preocupações e seus interesses, acesse e compartilhe informações e tenha melhor compreensão a respeito do tema. Entretanto, se as ferramentas utilizadas para envolver as partes interessadas não tiverem um nível mínimo de estrutura e mediação, os resultados podem se revelar difíceis de serem incorporados nas decisões. Faz-se mister, ainda, um acompanhamento para transformar as visões e as preocupações em contribuições para a tomada de decisão, para além do compartilhamento de informações.
Quadro 2.2. Princípios-chave da OCDE sobre engajamento das partes interessadas para uma governança dos recursos hídricos inclusiva
Aspectos críticos de governança devem guiar estruturas de engajamento das partes interessadas. O acesso justo e equitativo às oportunidades de engajamento é essencial para garantir um processo equilibrado e representativo que leve em consideração a diversidade de ideias e de opiniões. Faz-se necessário ser transparente e aberto sobre as maneiras de identificar as partes interessadas, de escolher mecanismos de engajamento e de definir os objetivos que podem ajudar a aumentar o interesse entre as partes interessadas, desenvolver o entendimento e apoiar as decisões finais. Fornecer plataformas para as partes interessadas compartilharem suas ideias não é suficiente. É preciso que os tomadores de decisões demonstrem como essas ideias são levadas em consideração. A transparência processual e a divulgação da informação, incluindo soluções alternativas, são cruciais para assegurar a legitimidade dos processos de tomada de decisão e os seus resultados. O engajamento pode reunir grupos com visões opostas que temem que as suas ideias não sejam consideradas. Mostrar aos participantes as intenções do processo e como suas opiniões serão tratadas é importante para assegurar que discussões e trocas de opiniões sejam produtivas. Também é importante que os responsáveis pelas decisões (decision-makers) confiem na qualidade e no valor das opiniões dos especialistas não-técnicos (OECD, 2015[14]).
Tabela 2.1. Princípios-chave da OCDE sobre engajamento das partes interessadas para uma governança dos recursos hídricos inclusiva
Inclusão e equidade |
Princípio 1: Mapear todas as partes que tenham interesse no resultado ou que possam ser afetadas por eles, bem como identificar suas responsabilidades, suas motivações centrais e suas interações. |
Clareza de objetivos, transparência e responsabilização |
Princípio 2: Definir o objetivo final da tomada de decisão, do engajamento das partes interessadas e do uso das opiniões. |
Capacidade e informação |
Princípio 3: Alocar recursos financeiros e humanos apropriados e compartilhar a informação necessária para o engajamento das partes interessadas baseado em resultados. |
Eficiência e eficácia |
Princípio 4: Avaliar regularmente o processo e os resultados do engajamento das partes interessadas para conhecer, ajustar e melhorar, conforme o caso. |
Institucionalização, estruturação e integração |
Princípio 5: Incorporar processos de engajamento em arcabouços legais e políticos claros, em estruturas ou princípios organizacionais e autoridades responsáveis. |
Adaptabilidade |
Princípio 6: Personalizar o tipo e o nível de engajamento sempre que necessário e manter o processo flexível às circunstâncias variáveis. |
Fonte: OECD (2015[14]), Stakeholder Engagement for Inclusive Water Governance. http://dx.doi.org/10.1787/9789264231122-en.
Quadro 2.3. A estratégia da Cidade do Cabo para a criação de resiliência por meio de parcerias e colaboração
A Cidade do Cabo reconhece que os relacionamentos colaborativos precisam ser construídos e mantidos em muitos níveis do sistema hídrico da cidade, incluindo:
cidadãos e prefeitura
consumidores e prestadores de serviços
cidadãos e liderança política
autoridades e políticos
departamentos da Cidade do Cabo
esferas do governo
empresas e a Cidade do Cabo
a Cidade do Cabo e a comunidade científica
a Cidade do Cabo e outros usuários dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário (WSS).
Os relacionamentos colaborativos são baseados na confiança que, por sua vez, é construída onde há transparência, responsabilidades mútuas e onde as intenções declaradas de todas as partes são sistematicamente traduzidas em ações. Com base nas experiências intensivas do engajamento durante a seca, a Cidade do Cabo promoverá e facilitará a construção de confiança de maneiras tangíveis:
Envolvendo os cidadãos e a sociedade civil. A Cidade do Cabo se esforçará para criar ambiente propício que responda às sugestões dos cidadãos. A cidade continuará a trabalhar com parceiros da sociedade e organizações colaborativas mediadoras. Fará enquetes continuamente para melhor compreender as necessidades e as percepções dos cidadãos e trabalhará com instituições de pesquisa, ONGs e organizações comunitárias que tenham estabelecido processos para documentar o uso e as necessidades hídricas na comunidade, além de suas percepções e suas atitudes:
Envolvendo as empresas. A Cidade do Cabo continuará a trabalhar com organizações colaborativas mediadoras, como a Green Cape, Wesgro e o WWF, para melhor compreender as necessidades e as percepções das empresas e para aprimorar a comunicação.
Envolvendo o governo. A Cidade do Cabo continuará a trabalhar com colaboradores mediadores, como a Western Cape Economic Development Partnership (EDP) e o Programa Nacional de Apoio à Cidade do Cabo do Tesouro Nacional, para facilitar relacionamentos produtivos com outras esferas do governo, incluindo o Governo do Cabo Ocidental e os vários departamentos do governo federal.
Envolvendo o trabalhador. A Cidade do Cabo continuará a trabalhar com as organizações trabalhistas como parceiros-chave na entrega de serviços visando a assegurar a proteção dos direitos dos trabalhadores.
Envolvendo os pesquisadores. A Cidade do Cabo continuará a engajar-se com grupos de trabalho de pesquisa, como o Freshwater Forum, o Consórcio de Educação Superior do Cabo, o Grupo de Pesquisa da Água, a Comissão de Pesquisa da Água e o Water Hub, para desenvolver e buscar pesquisas aplicadas, bem como processos de tomadas de decisão com base em evidências, para auxiliar a Cidade do Cabo a melhor cumprir seu mandato e a executar esta estratégia. A Cidade do Cabo explorará também um enfoque transdisciplinar da pesquisa e fará parcerias com pesquisadores para o desenvolvimento de agendas e projetos comuns de pesquisa para a cidade.
Envolvendo os consumidores-chave. A Cidade do Cabo estabelecerá uma unidade-chave de consumidores para melhor responder às suas necessidades.
Envolvendo a expertise e as experiências internacionais. A Cidade do Cabo melhorará o conhecimento existente e desenvolverá conhecimentos novos estabelecendo parcerias com agências nacionais e internacionais capazes de compartilhar conhecimento e experiências relevantes para permitir a implementação mais eficaz dessa estratégia. Quando for o caso, a Cidade do Cabo empregará colaboradores-mediadores para apoiar essa atividade. Além disso, a cidade está comprometida em compartilhar suas próprias experiências com essas instituições, a fim de contribuir com a comunidade global dessa prática.
Fonte: OECD (2021[15]), Water Governance in Cape Town, South Africa, https://doi.org/10.1787/a804bd7b-en; City of Cape Town (2019[16]), Cape Town Water Strategy, https://resource.capetown.gov.za/documentcentre/Documents/City%20strategies%2c%20plans%20and%20frameworks.
A participação de comunidades desassistidas/desfavorecidas requer e está recebendo mais atenção. Entretanto, os profissionais da gestão de recursos hídricos precisam ampliar seu raio de ação, especialmente no que diz respeito ao conhecimento histórico e ecológico das comunidades nativas que são soberanas e detêm direitos, mas geralmente são pouco consultadas (Quadro 2.4).
Quadro 2.4. A Declaração do Rio Fitzroy para maior envolvimento das partes interessadas
Na bacia do rio Fitzroy (Austrália), os princípios da OCDE propiciaram uma ferramenta para partes interessadas sub-representadas promoverem seu engajamento no projeto e na execução da política de recursos hídricos. Uma comunidade indígena da Austrália elaborou uma declaração política que busca proteger os valores tradicionais e ambientais que fundamentam o patrimônio cultural do rio Fitzroy. A comunidade aborígine foi a guardiã tradicional do rio por séculos, mas o desenvolvimento crescente na bacia tem colocado em risco o futuro do rio e de seus povos. A “Declaração do Rio Fitzroy”, elaborada com base nos princípios da OCDE, incentiva o governo a estabelecer um sistema de governança na Austrália Ocidental que permita engajamento das partes interessadas e, em última análise, uma gestão conjunta do rio entre o governo e as comunidades aborígines.
Os proprietários tradicionais da região de Kimberley, na Austrália Ocidental, estão preocupados com as aduções e as extensivas propostas de desenvolvimento relativas ao rio Fitzroy e a sua bacia, e com os impactos potenciais cumulativos em seus valores culturais e ambientais únicos. Os valores culturais e ambientais ímpares do rio Fitzroy e de sua bacia têm importância nacional e internacional. O rio Fitzroy constitui ser ancestral vivo e tem direito à vida. Deve ser protegido para as atuais e as futuras gerações, e ser gerido conjuntamente pelos Proprietários Tradicionais do rio.
Os Proprietários Tradicionais da bacia do rio Fitzroy concordam em trabalhar em conjunto para:
1. Iniciar processo para a tomada de decisão juntamente com o Prescribed Body Corporates sobre atividades na bacia hidrográfica do rio Fitzroy;
2. Alcançar posição comum sobre o fraturamento (fracking) na bacia hidrográfica do rio Fitzroy;
3. Criar uma zona-tampão, sem mineração, óleo, gás, irrigação e represas na bacia hidrográfica do rio Fitzroy;
4. Elaborar e acordar um Plano de Gestão para toda a bacia hidrográfica do rio Fitzroy, baseado em valores tradicionais e ambientais;
5. Desenvolver uma Agência de Gestão do Rio Fitzroy para a bacia, fundamentada na governança cultural;
6. Complementar estas medidas com a criação conjunta de uma Área Indígena Protegida para o Rio Fitzroy;
7. Engajar-se com governos estaduais e locais para transmitir suas preocupações e assegurar-se do cumprimento do processo de comum acordo;
8. Pesquisar opções legais para apoiar as disposições acima, incluindo:
a. Fortalecimento das proteções sob a Lista de Patrimônio Cultural Nacional da Lei de Proteção do Meio Ambiente e Conservação da Biodiversidade;
b. Fortalecimento das proteções sob a Lei do Patrimônio Aborígine; e
c. Legislação para proteger a bacia hidrográfica do rio Fitzroy e seus valores culturais e naturais únicos.
Fonte: OECD (2018[13]). Implementing the OECD Principles on Water Governance: Indicator Framework and Evolving Practices, https://doi.org/10.1787/9789264292659-en; Martuwarra Fitzroy River(2016[17]), Fitzroy River Declaration, https://martuwarrafitzroyriver.org/fitzroy-river-declaration.
Os métodos e as ferramentas de comunicação são cruciais para fortalecer a dinâmica de pactos pela gestão de recursos hídricos coletivamente acordados. No Arizona, as práticas de comunicação melhoraram muito nos últimos anos. Há alguns anos, as reuniões ocorridas na sede do Projeto do Arizona Central, no norte de Phoenix, começaram a ser transmitidas para que mais partes interessadas pudessem assistir e observar. A pandemia acelerou e melhorou essa tendência com a introdução de reuniões interativas e virtuais. A maioria das reuniões é realizada por órgãos públicos que têm de compartilhar agendas, anunciar reuniões, fornecer acesso aos materiais/recursos, etc. As lideranças têm se esforçado para viajar e conversar com as pessoas. Bons memorandos também se mostraram importantes para transmitir e compartilhar informações. É importante dispor de base de dados precisa para fornecer informações claras e harmonizadas. A base de dados é útil especialmente quando se trata de águas subterrâneas, porque a modelagem traz visibilidade para algumas evoluções que, de outra forma, seriam imperceptíveis. As partes interessadas podem ser céticas, daí a importância de ser transparente sobre os modelos utilizados.
Investindo no monitoramento e no controle hidrológico
No que diz respeito à conformidade do uso de recursos hídricos, a Declaração Anual de Uso de Recursos Hídricos (DAURH) é um instrumento auto-declaratório importante que exige que os grandes usuários brasileiros de recursos hídricos informem seu volume anual de adução. A DAURH é exigida nas bacias e nos sistemas onde há pressão sobre recursos hídricos e tem aprimorado o monitoramento dos seus usos em muitas bacias hidrográficas do Brasil. Na bacia do Piancó-Piranhas-Açu, as declarações exigidas dos usuários representam 75% da demanda hídrica atendida pelos seis reservatórios principais. Outras metodologias de monitoramento do uso da água foram implementadas, como sensoriamento remoto de áreas irrigadas, telemetria dos dados de uso da água e autodeclaração de uso da água usando aplicativos móveis (apps). Além disso, o escritório técnico contratado, em 2016, executou diversas atividades para apoiar a avaliação de conformidade do uso de recursos hídricos em águas federais e estaduais. Essas atividades incluíram a identificação e o registro de usuários de recursos hídricos, medição de vazão, monitoramento de operações do reservatório, identificação das obstruções nos rios e visitas técnicas às barragens. De 2017 a 2020, mais de duas mil visitas técnicas foram realizadas para verificar a situação do uso da água e a conformidade com as regras de uso. Além disso, imagens de satélites foram usadas para identificar e monitorar remotamente áreas agrícolas na região, bem como os usos irregulares, o que levou a ANA a coordenar a remoção de bombas de água e o fechamento de canais irregulares. A combinação de atividades de campo com as tecnologias remotas inteligentes melhorou a conformidade do uso da água e ajudou a controlar a demanda hídrica durante o período de seca severa que durou de 2013 a 2019. Entretanto, melhorias adicionais no monitoramento e na avaliação do uso da água na bacia são necessárias e estão em discussão. Tais melhorias incluem funções de gestão operacional do recurso hídrico para apoiar a implementação de regras de alocação da água, como monitoramento e controle hidrológico e da demanda hídrica, dragagem de rio, operações do reservatório, manutenção e segurança de barragens, eficiência do uso da água e controle de poluição. O Quadro 2.5 oferece exemplos internacionais.
Quadro 2.5. Monitoramento e controle hidrológico na Espanha, na França e na Califórnia, EUA
Condicionar direitos de uso de recurso hídrico a controle e comunicação
Na Bacia Hidrográfica do rio Júcar (BHJ), Espanha, quando o direito de uso da água é concedido, o detentor do direito é obrigado a instalar um sistema de monitoramento e comunicar as informações à Comissão de Usuários. O direito de uso do recurso hídrico pode até ser revogado de seu outorgado, em caso de falha em informar. Esse sistema de controle, não obstante, exige uma capacidade significativa de fiscalização devido aos 4.000 poços instalados na BHJ. Esforços foram feitos para melhorar o controle da retirada da água, especialmente nas áreas onde águas subterrâneas são exploradas em excesso. No sul da BHJ, o controle é executado pelas populações locais. Na Mancha Oriental, o controle é feito por meio da teledetecção. Não obstante, a UE está estimulando a Espanha a aumentar o controle sobre a retirada e uso da água. Necessita-se, também, de maior engajamento das partes interessadas para melhorar o controle e o monitoramento hidrológico. Sanções e penalidades também estão sendo consideradas para melhorar a aplicação dos controles e do monitoramento. A fim de aprimorar a comunicação sobre o uso da água e a conformidade na bacia hidrográfica do PPA, as obrigações constantes da DAURH poderiam ser vinculadas à possível remoção de direitos de uso de recurso hídrico, em caso de repetida falha ou inexatidão nas informações prestadas. Isto poderia aumentar as declarações prestadas sobre o uso da água e a conformidade, ao mesmo tempo em que melhoraria o monitoramento dos recursos hídricos e a fiscalização da alocação da água. Não obstante, as sanções deveriam ser precedidas e apoiadas por processos intensivos de engajamento das partes interessadas.
Avaliação e gestão mais rigorosas em áreas de estresse hídrico
Na França, a água é geralmente abundante, embora o estresse hídrico esteja aumentando em algumas regiões e haja episódios periódicos de escassez. Nas áreas com estresse hídrico, são exigidos relatórios mais detalhados da disponibilidade e do uso da água. As leis relacionadas à gestão de recursos hídricos são mais rígidas nessas áreas e o regime de alocação é mais inflexível. Um exercício de mapeamento foi empreendido para identificar áreas de estresse hídrico, subterrâneas ou de superfície. Isso é utilizado para definir as áreas de partilha da água, onde o déficit hídrico é estrutural. Estas zonas são o foco das reformas recentes para restaurar volumes de adução sustentáveis, bem como a criação de Organismos Únicos de Gestão Coletiva (Organismes Uniques de Gestion Coletive, OUGC) para incentivar irrigantes a alocar entre eles um volume definido de água, em nível de bacia.
Modelos de hidrologia para promover o diálogo e apoiar a tomada de decisão
Os modelos hidrológicos não são somente ferramentas importantes para alocar recursos hídricos, são também úteis para promover o diálogo entre partes interessadas e para apoiar a tomada de decisão bem-informada. Como tal, devem ser utilizados desde o início. Na Califórnia, a modelagem hidrológica mostrou-se útil para fornecer melhor compreensão da situação hidrológica e de sua provável evolução, ajudando, assim, na tomada de decisões melhores. Os problemas de exatidão dos dados podem ser importantes, destacando a necessidade de um sistema comum e harmonizado de contabilidade para toda a bacia. Os modelos podem também ser úteis para o aperfeiçoamento dos dados. Baseado na experiência da Califórnia, recomenda-se construir e utilizar modelos hidrológicos, precocemente, e aperfeiçoá-los com o passar do tempo, ao invés de coletar dados por muitos anos antes de começar a construir qualquer modelo. Na Espanha, a avaliação dos recursos disponíveis e das demandas, em cada sistema de recursos hídricos, é realizada nos Planos de Gestão de Bacias. Produz-se um inventário de recursos hídricos disponíveis, e identificam-se os usos e as demandas existentes de água. Foram desenvolvidos métodos de avaliação de recursos hídricos para todo o território nacional, bem como modelos de simulação de recursos hídricos que levam em consideração recursos hídricos convencionais e não convencionais, vazões ambientais, demandas hídricas, infraestrutura hídrica, prioridades de uso da água e regras de exploração para estabelecer alocações e reservas de água.
Fonte: OECD/ANA(2021[18]),“Oficina sobre fortalecimento da governança na bacia hidrográfica do rio Piancó-Piranhas-Açu (25-28 maio 2021)”.
Melhorando mecanismos de alocação de água
O termo “regime de alocação de água” é utilizado para descrever o processo e as ferramentas envolvidos no compartilhamento de recursos hídricos entre os diferentes usuários de água. Isso inclui o estabelecimento de planos de recursos hídricos que definem a disponibilidade hídrica e a concessão de outorgas de uso de água a usuários individuais. Inclui também a alocação de recursos hídricos em longo prazo, bem como ajustes sazonais à quantidade de água disponível aos diferentes usuários, e a alocação das águas superficiais e subterrâneas. Existem diversas ferramentas para traduzir os princípios da alocação para uma gestão hídrica concreta. Isso inclui planos de gestão hídrica, licenças de uso da água, títulos coletivos e ferramentas de fiscalização e monitoramento.
A OCDE(2015[19]) demonstra que o Brasil alcançou progresso notável na reforma de seu setor hídrico desde a Lei das Águas de 1997. Entretanto, as pressões econômicas, climáticas e de urbanização podem aumentar as tensões entre usuários de recursos hídricos em algumas regiões e bacias, como, por exemplo, na bacia do rio Piancó-Piranhas-Açu (PPA). O relatório recomenda fortalecer a coordenação entre políticas hídricas federais e estaduais e estabelecer regimes mais robustos de alocação da água que possam lidar melhor com os riscos futuros de escassez hídrica (Quadro 2.6).
Quadro 2.6. Avaliação da OCDE e recomendações para alocação de água no Brasil
Três grandes fragilidades que necessitam ser enfrentadas
Os planos de recursos hídricos - em níveis federal, interestadual e estadual, de bacia hidrográfica ou de unidade de planejamento hidrológico - não estabelecem prioridades ou critérios que possam levar a decisões de alocação. Além disso, os planos geralmente não levam em conta eventos cíclicos, como as secas e, carecem de clareza, em termos de prioridades no uso de recursos hídricos, em épocas de crise. O planejamento setorial ocorre mais de forma isolada (por exemplo: desenvolvimento de energia hidrelétrica, ampliação da irrigação), frequentemente, desvinculado dos processos de planejamento de recursos hídricos.
A responsabilidade por muitas decisões de alocação é dos comitês de bacia ou das agências estaduais - entidades cujas prioridades de alocação da água podem diferir daquelas em nível federal. As tensões possíveis entre prioridades federais e estaduais são exacerbadas pelos desafios impostos pela dupla dominialidade
A implementação da política de alocação de água continua a ser a exceção, não a regra.
Sugestões para regimes robustos de alocação de água no Brasil
Uma combinação de três grupos de medidas pode ajudar a enfrentar as fragilidades identificadas.
Primeiramente, os recursos hídricos disponíveis e as prioridades para o uso de recurso hídrico devem ser claramente definidos:
Definir vazões de referência que maximizem os benefícios e a eficiência do uso de recurso hídrico; isso pode envolver direitos de uso de recurso hídrico com diferentes níveis de confiabilidade ou permitir que os usuários determinem seus próprios níveis de risco.
Os planos de recursos hídricos devem identificar prioridades e orientar as decisões de alocação. Eles devem incentivar o uso múltiplo dos recursos hídricos dos reservatórios.
Em segundo lugar, os instrumentos das políticas públicas devem ser projetados para servir aos objetivos da política de alocação de água:
Definir critérios para emitir outorgas de uso de recursos hídricos que sejam consistentes e aumentem a flexibilidade para os usuários de recursos hídricos (por exemplo: direitos coletivos de uso da água para irrigação).
Desenvolver instrumentos econômicos que combinem eficiência e flexibilidade, incluindo mecanismos de precificação para facilitar a realocação de água entre usuários de recursos hídricos.
Em terceiro lugar, definir os arranjos de governança para assegurar a alocação eficiente:
Estabelecer mecanismos para monitorar e garantir o regime de alocação da água.
Criar arranjos institucionais para fortalecer a capacidade dos estados de desenvolver planos e definir prioridades, incluindo a coerência com o nível federal para cursos de água de duplo domínio .
Informar, capacitar e envolver os usuários de recursos hídricos na tomada de decisão.
Fonte: OECD (2015[19]), Water Resources Governance in Brazil, https://doi.org/10.1787/9789264238121-en.
Todos os recursos hídricos do Brasil estão em domínio público (federal ou estadual). A Lei das Águas de 1997 estipula que o consumo humano e a dessedentação animal têm prioridade sobre os outros usos nos períodos de escassez hídrica. Conforme o decreto 3.692/2000, a ANA deve estabelecer vazões mínimas para os rios estaduais que alimentem rios federais.
Dependendo do equilíbrio entre abastecimento e demanda hídrica estimado para o ano seguinte, os reservatórios e os rios podem estar sujeitos a alocações negociadas de água para aquele ano (Alocação de Água - AA). Um acordo permanente de recursos hídricos (chamado marco regulatório - MR) foi criado para reservatórios e rios com um déficit hídrico crônico (sujeitos a várias AAs). O objetivo é estabelecer limites sobre o volume total de água disponível para alocação e determinar regras para compartilhar a água durante períodos de escassez. Ambos os instrumentos geralmente estabelecem:
uma cota para cada uso da água (abastecimento humano, irrigação, etc.)
restrições ao uso da água para preservar usos múltiplos na eventualidade de escassez hídrica
Os regimes de alocação de água na bacia hidrográfica do PPA foram estabelecidos por meio de acordos de uso da água (water agreements) em nível local. Em 2018 e 2019, após processo intenso de debate, os Marcos Regulatórios (MRs) foram discutidos e implementados nos principais sistemas de reservatórios da bacia hidrográfica. Em muitos casos, as regras de alocação de água evoluíram para definições conjuntas assinadas pela ANA e pelas agências dos governos estaduais, definindo as regras de uso de águas federais e estaduais, enfrentando, assim, as questões relacionadas à dupla dominialidade. Tais acordos de alocação de água geralmente estabelecem uma quota para cada uso da água, considerando a disponibilidade hídrica do sistema hidrológico. Há também regras de restrição de uso da água, associadas aos níveis dos reservatórios ou às vazões dos rios. Entretanto, é importante que se incentive o desenvolvimento institucional para implementar regras de alocação de água tanto em sistemas locais, quanto em grandes trechos de rio.
A implementação das AAs e dos MRs na bacia do PPA começou em 2015. Em 2021, sete (de onze) reservatórios situados na bacia estavam sob o MR e outros dois sujeitos a uma AA. Além das AAs e MRs, a conformidade com os níveis mínimos de vazão dos rios e de água nos reservatórios, estabelecidos pela Lei das Águas de 1997, pode provocar limitações adicionais ao uso do recurso hídrico.
O CBH conduz os processos de AA. As comissões "ad hoc" asseguram a implementação apropriada das AAs e emitem comunicados em relação ao estado dos recursos hídricos e riscos de escassez. Os MRs são passíveis de fiscalização por meio de resolução da ANA ou da agência de água estadual competente, ou de ambas. Eles resumem os conjuntos de regras definidas em consulta com governos locais e usuários da água (por exemplo: vazões de referência ao longo da bacia, como base para decisões de alocação). Onde quer que estejam em vigor, todas as outorgas de uso da água devem incluir as condições que exigem que o usuário da água cumpra as regras estabelecidas pelo MR.
A Tabela 2.2 resume as características-chave do regime de alocação de água no Brasil.
Tabela 2.2. Regime de alocação de água no Brasil
Componentes |
Característica |
---|---|
Contexto legal para a alocação de água |
Direito romano em contraponto ao direito consuetudinário (em vigor na Austrália e nos Estados Unidos), isto é, não há nenhum direito a áreas ribeirinhas ou apropriação prévia no Brasil. Há direitos estatutários de uso de recurso hídrico independentemente dos títulos de propriedade de terra |
Prioridade de alocação |
Por lei, o consumo humano e a dessedentação animal têm prioridade sobre a alocação de água em condições de seca; em nível da bacia, a ordem de prioridade entre os demais usos da água pode ser fixada, expressamente, pelo plano da bacia hidrográfica ou, implicitamente, pelo marco regulatório |
Por lei, a energia garantida de hidreletricidade somente pode variar 5% a cada cinco anos e 10% durante os 35 anos da concessão |
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As vazões ambientais são definidas por agências ambientais e variam de acordo com o rio |
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Outorga para uso de recurso hídrico |
Não pode ser negociada ou alugada, mas pode ser transferida |
Pode ser perdida se não utilizada por 3 anos |
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As outorgas individuais não são diferenciadas com base no nível de segurança da fonte (ou do risco de escassez) |
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Concedida por 10 anos (pequena área irrigada; pequenas indústrias; aquicultura; pecuária; mineração; outros); 20 anos (áreas irrigadas acima de 2.000 ha; indústrias com aduções acima de 1 m³/s) ou 35 anos (reservatórios para controle de enchentes ou hidrelétricas e outras estruturas hidráulicas; abastecimento de água e saneamento públicos); estados podem ter suas próprias regras para definir por quanto tempo os direitos são válidos |
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Em rios federais selecionados, os usuários com adução de água acima dos limites definidos são obrigados a instalar dispositivos de medição |
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Os pedidos de outorga estão sujeitos a uma avaliação de impacto sobre os direitos hídricos existentes; em situações específicas estab elecidas por lei, novos pedidos de outorga podem motivar novos marcos regulatórios que podem levar à revisão das outorgas atuais |
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Limites de adução |
Em nível da bacia, os marcos regulatórios estabelecem limites/quotas permanentes de adução para cada uso da água (por exemplo: área irrigada máxima de "x" hectares corresponde a um teto de "y" m3/s) |
Em nível de corpo hídrico, no caso de escassez hídrica, a alocação pode ser mais baixa que a outorga estipula e variar de ano a ano e de estação a estação, dependendo das discussões diretas com os usuários do recurso hídrico (“Alocação negociada da água”) |
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Cobranças pelo uso de recursos hídricos |
Os titulares de outorgas de uso de recurso hídrico podem ser obrigados a pagar pela retirada de água de bacias onde esses encargos forem estabelecidos, como na bacia do Rio São Francisco; com base no volume anual de água retirada (contada ou declarada) para agricultura, indústria e residências; com base na produção de energia (6,75%) para hidrelétricas |
Mecanismo de resolução de conflitos |
Os conflitos pelo uso da água são primeiro trazidos ao CBH para resolução. Se não for resolvido, o conflito pode ser levado ao conhecimento do CERHS ou da CNRH. Conflitos entre CERHs são resolvidos pela CNRH |
Fonte: Adaptado de OECD (2015[20]), Water Resources Allocation: Sharing Risks and Opportunities, https://doi.org/10.1787/9789264229631-en.
O Plano Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), entretanto, não fornece clara orientação sobre como a alocação de água entre setores deve ser resolvida nas épocas de escassez hídrica. Para controlar o risco de escassez, a alocação da água na bacia do PPA é baseada principalmente nos acordos negociados entre usuários anualmente (AAs), que podem se transformar em marco regulatório (MR), caso persista o risco de escassez em um rio ou um reservatório.
Metodologias de precificação podem alocar água entre usuários a um custo-benefício melhor. Este é o caso de cobranças pelo uso de recursos hídricos dispostas na Lei das Águas de 1997, introduzidas, até certo ponto, no estado da Paraíba, contanto que reflitam o risco de escassez e que as taxas não sejam diferenciadas entre usuários. Sistemas de limites e comércio de emissões de gases de efeito estufa (cap-and-trade systems) teriam o melhor custo-benefício ao estabelecer (1) um teto à adução e (2) um preço para a outorga pelo uso da água, implicitamente taxando a adução de acordo com a demanda da água, melhorando, assim, a eficiência do uso do recurso hídrico. As cobranças pelo uso de recursos hídricos e os sistemas de outorgas (mercado de água) serão discutidas abaixo, bem como a combinação entre eles ou com a regulação direta.
Vazões ambientais
A alocação de água constitui essencialmente meio de controlar o risco de escassez e de ajustar usos concorrentes. Ao estabelecer regimes de alocação de água, as vazões de referência devem levar em consideração as demandas não-consuntivas de água, incluindo as vazões ambientais (e-flows), que indicam o regime de vazão necessário para sustentar serviços ecossistêmicos em nível necessário (Quadro 2.7).
Quadro 2.7. Opções para tratamento de fluxos de vazões dentro de regime de alocação de água
Ao desenvolver um regime de alocação e estabelecer um limite à adução de longo prazo, é importante decidir se serão incluídas algumas ou todas as outorgas para uso de recurso hídrico neste limite. A abordagem mais comum é de reservar quantidade suficiente para necessidades ambientais, usos não-consuntivos e transposições a outros sistemas (incluindo obrigações a jusante) como de direito prévio e, então, a alocação do restante da água para fins de consumo.
Uma abordagem alternativa que está sendo testada na Austrália é destinar uma quantidade de água ao meio ambiente, na forma de direito de uso da água (entitlement), uma parte de todas as entradas, e definir esse direito de uso de recurso hídrico separadamente dos arranjos utilizados para assegurar que as vazões de base, por exemplo, sejam mantidas. Na bacia de Murray-Darling, um Armazenador Ambiental de Água da Comunidade Britânica (Commonwealth Environmental Water Holder) foi estabelecido e espera-se que, até 2019, detenha cerca de um terço do direito de uso da água da bacia. Sob esse novo arranjo, o governo não pode alocar água aos consumidores sem fazer uma alocação pro rata ao Armazenador Ambiental de Água da Comunidade Britânica. A Austrália está utilizando essa abordagem, a fim de destinar a água para uso ambiental no mesmo nível dos outros usos da água. Sob este arranjo, as alocações são feitas proporcionais ao número de direito de uso da água obtidas com propósitos ambientais, independentemente do nível pluviométrico da região. Os administradores, por conseguinte, não podem transferir a água de uso ambiental a outros usuários.
Nos Estados Unidos, grupos não-governamentais têm comprado água para garantir a proteção ao meio ambiente. Um exemplo bem conhecido é o do Oregon Water Trust que se transformou em um programa do The Freshwater Trust, em 2008.
Fonte: OECD (2015[20]), Water Resources Allocation: Sharing Risks and Opportunities, https://doi.org/10.1787/9789264229631-en.
A vazão ambiental é um assunto muito técnico (com nível mínimo, nível máximo, nível de vazão ao longo do tempo). Grande parte da determinação das vazões ambientais foca na vazão mínima em relação à escassez de água com o objetivo de preservar os ecossistemas a jusante (Quadro 2.7). Diferentes metodologias podem ser utilizadas. Uma delas é baseada em dados históricos que são utilizados para analisar vazões mínimas históricas. Por meio da modelagem de dados históricos, a regulação de vazão mínima é determinada. Outro método utiliza-se de estudos biológicos para determinar as necessidades dos peixes e as exigências de vazões mínimas associadas. Esse método é executado com o apoio de acadêmicos e pesquisadores das universidades. Além disso, há importante trabalho hidrológico e de planejamento feito com fornecedores de eletricidade para adaptar as vazões.
Na Espanha, a visão das exigências ambientais mudou muito. No passado, a visão dominante era mais utilitária, com a finalidade de usar a água e o meio ambiente para criar riquezas. O foco começou a mudar na década de 1990, quando uma importante seca comprometeu o fornecimento urbano de água. Mais tarde, a Diretiva Quadro da Água ajudou a desenvolver e fortalecer o conceito de vazão ecológica dos rios. Existe, ainda, a necessidade de se aumentar essas vazões, mas é difícil fazer os usuários compreenderem a necessidade de manutenção de algumas condições ecológicas. Isto se tornará cada vez mais importante no futuro, especialmente para adaptar-se às mudanças climáticas, com o aumento da temperatura da água se transformando em um problema. A importância de vazões ambientais é amplamente reconhecida e a falha em proporcionar vazões ambientais adequadas pode levar a múltiplos impactos negativos, frequentemente, inesperados (Quadro 2.8).
Quadro 2.8. Impactos da desconsideração das vazões ambientais
Os sistemas de água doce fornecem ampla gama de serviços ecossistêmicos. Mudanças no regime de vazão natural podem impactar a capacidade de um rio de fornecer esses serviços. Práticas impróprias de alocação de água podem significar que muitos benefícios que os rios oferecem - gratuitamente - podem ser perdidos, com impacto significativo às comunidades humanas dependentes. Os exemplos das experiências internacionais incluem:
Aumento do risco de inundação - como no Rio Amarelo, na China, onde a superalocação resultou no acúmulo de sedimentos e em mudanças na morfologia do rio. Isto fez com que o rio subisse acima da planície alagável e provocasse um aumento significativo no risco de inundação. As vazões alocadas (dedicated flows), representando cerca de 35% da vazão anual média, são agora utilizadas como parte do regime de alocação para melhorar a movimentação dos sedimentos, no esforço para reduzir o risco de inundação.
A intrusão salina e a consequente degradação ambiental, como no Rio Indus, Paquistão, onde a superalocação e as vazões altamente reduzidas na foz levaram à intrusão de água salgada para cerca de 64 quilômetros adentro, resultando na perda de, aproximadamente, 1,2 milhão de acres de terra arável.
Diminuição do número de peixes e de outras espécies aquáticas, como no Rio Yangtze, China, onde as mudanças no regime de vazão a jusante, por causa da construção da Barragem das Três Gargantas, causaram diminuição no estoque de peixes jovens das quatro principais espécies de carpas em até 95%, com efeitos subsequentes na produção pesqueira.
Fonte: Poff, L., R. Tharme and A. Arthington (2017[21]), “Evolution of environmental flows assessment science, principles, and methodologies”, http://dx.doi.org/10.1016/B978-0-12-803907-6.00011-5.
Nos EUA, necessidades ambientais e demandas hídricas são decentralizadas e variam de acordo com cada jurisdição. Lidar com a vazão ambiental é chave para manter os ecossistemas aquáticos em boas condições, uma vez que eles aumentam a sustentabilidade e melhoram a qualidade da água. Não obstante, as vazões e as necessidades ambientais são de difícil valoração.
Mecanismos de compensação
A prioridade dada por lei ao consumo humano e animal em detrimento de outros usos, em época de escassez hídrica, pode levar (o que já ocorreu) a privar os produtores rurais de seus direitos referentes à água, com consequências econômicas decorrentes da ausência de um mecanismo financeiro de compensação. Para compensar os agricultores que se deparam com essa situação ou para evitar que essa situação ocorra, três opções poderiam ser consideradas: (1) um regime de seguro ou resseguro garantido pelo governo federal poderia ser combinado com o atual esquema de cotas AA/MR, (2) a generalização das cobranças pelo uso de recursos hídricos poderia substituir a regulação direta (ou seja, o regime AA/RM) por um sistema de subsídios cruzados em favor dos agricultores, conforme acima descrito, ou (3) leilão de cotas AA/MR poderia ser permitido, mas garantindo os direitos originários dos produtores rurais.
No Brasil, os grandes bancos públicos (Banco do Brasil, Banco da Amazônia) cobrem os custos do seguro agrícola (até certo ponto) para fazendeiros de baixa renda. Não há nenhum seguro para irrigação. Há certamente melhor custo-benefício na cobertura do risco de não-produção do que cobrir o risco de falta de água para irrigação. Este último poderia ser considerado um subsídio a insumos agrícolas e ficaria sob a disciplina de subsídio da OMC.
O seguro multirrisco (pragas, secas, danos causados pela vida selvagem às culturas, etc.) aumentaria a base para os prêmios de seguro e reduziria a taxa. O mesmo raciocínio aplica-se ao seguro em nível de bacia para consorciar o risco entre todos os fazendeiros daquela bacia. Os contratos de seguro plurianuais permitiriam uma recuperação melhor dos prêmios (pelo spread de risco). Definir um limite de risco de seca (“um nível aceitável” de risco de seca) melhoraria a transparência na atribuição de prêmios de seguro.
Para evitar o risco moral, em vez de subsidiar o prêmio do seguro de alguns fazendeiros (de renda mais baixa), haveria melhor custo-benefício em aplicar um valor mínimo de prêmio a todos os fazendeiros, introduzir um prêmio adicional para aqueles de maior renda e redistribuir essa renda para ajudar os mais pobres a pagar o prêmio mínimo.
Os instrumentos de precificação da água poderiam ser úteis para complementar o seguro de colheita. Em caso de seca, os mercados de água compensariam (em parte) a perda da produção agrícola com um valor mais elevado de direitos de uso de recurso hídrico, especialmente direitos de uso da água de longo prazo (ajuste de mercado). A generalização das cobranças pelo uso de recursos hídricos de acordo com o risco de escassez exigiria a definição de um limite aceitável de risco de escassez, melhorando assim a implementação do seguro agrícola. O Quadro 2.9 apresenta uma visão geral do funcionamento dos instrumentos de gestão de riscos agrícolas nos países da OCDE e nas economias emergentes.
Quadro 2.9. Instrumentos de gestão de riscos agrícolas
Um papel fundamental do governo na gestão de riscos agrícolas (GRA) é o de facilitar o desenvolvimento de informações sobre riscos agrícolas. Uma melhor avaliação de risco ex ante reduz problemas de seleção adversa que surgem porque os produtores sabem mais que a seguradora sobre os riscos que afetam sua produção agrícola.
Apoio governamental a políticas de GRA deve se limitar a fornecer proteção contra “perdas catastróficas”, definidas pela Organização Mundial do Comércio como perdas superiores a 30% de uma média histórica de produção ou nível de renda. No entanto, desde o lançamento das reformas de políticas agrícolas no final da década de 1980, com o objetivo de eliminar gradualmente a proteção de fronteiras e os preços garantidos ao produtor, os governos dos países da OCDE e das economias emergentes quase quadruplicaram os gastos com políticas de GRA, atingindo US$ 25 bilhões em 2019. Isso inclui o seguro agrícola (73% dos gastos em 2019), ajuda ex post em catástrofes (20%), programas de estabilização de renda (5%) e medidas fiscais e de poupança (2%).
O seguro agrícola garante aos produtores um nível de rendimento ou receita em troca de um prêmio pago com base em uma estimativa atuarial de risco. Ele pode oferecer proteção contra um único risco (como o seguro agrícola) ou vários riscos. Os sinistros são baseados na perda real de rendimento (contratos baseados em indenização) ou rendimento regional, clima ou outras variáveis (contratos baseados em índices).
O auxílio ex post contra catástrofes compensa os produtores após uma catástrofe natural. Na maioria das vezes, a decisão do governo de intervir é tomada após o fato, de modo que, no momento do plantio, os produtores não sabem se estarão ou não protegidos no caso de um desastre.
Os programas de estabilização de renda visam a manter a renda dos produtores em torno da média dos últimos anos, geralmente garantindo uma renda mínima. Ao contrário do seguro agrícola, que é voltado para culturas individuais, a estabilização da renda diz respeito a toda a produção da propriedade.
As medidas fiscais e de poupança visam a reduzir a variabilidade da renda por meio de contas de poupança com impostos diferidos, em que o governo iguala os depósitos de poupança do produtor até um valor definido e permite que os produtores optem por não participar do programa, muitas vezes sem qualquer penalidade, nos anos em que a renda agrícola cair abaixo de um determinado nível.
Os gastos do governo com políticas de GRA podem representar parcela significativa do apoio ao produtor (Producer Support Estimate - PSE), conforme estimado pela OCDE, como uma porcentagem das receitas brutas da propriedade. No período de 2017 a 2019, os gastos governamentais representavam 15% do PSE no Brasil, 22%, nos Estados Unidos, 30%, no Canadá e 50%, na Austrália, mas apenas 3%, na UE-28.
As políticas de GRA (seguro agrícola) distorcem as escolhas de produção e o uso de insumos agrícolas, incluindo água para irrigação e, portanto, são mais propensas a aumentar a pressão ambiental do que as políticas de GRA que apoiam a renda (programas de estabilização de renda, medidas fiscais e de poupança). A maneira mais eficaz de gerenciar o risco de escassez de água para irrigação por meio de políticas de GRA de apoio à renda seria condicionar o subsídio dos prêmios de seguro a resultados ambientais, como a eficiência no uso da água para irrigação.
Um problema comum a todas as políticas de GRA é que criam riscos morais, ou seja, o segurado tem um incentivo para aumentar sua exposição ao risco porque não arca com os custos totais de tal risco. Para minimizar o risco moral, a maioria das políticas de GRA inclui uma franquia dedutível (ou seja, o produtor deve pagar pelas perdas até um nível acordado a partir do qual o seguro começa a cobrir) e/ou um copagamento em que a seguradora paga apenas parte da indenização (o restante sendo absorvido pelo segurado). Por exemplo, sob o programa de seguro agrícola dos Estados Unidos, as franquias geralmente são fixadas em 25% ou mais para culturas em que a experiência atuarial pode ser limitada.
Fonte: Glauber, J. et al.(2021[22]), “Design principles for agricultural risk management policies”, https://doi.org/10.1787/1048819f-en.
As experiências internacionais demonstram que a informação e o engajamento das partes interessadas são fundamentais para resolver conflitos na ausência de mecanismos de compensação. Na Califórnia, o estado criou um sistema comum de contabilidade hídrica para que todas as partes interessadas tenham acesso e usem dados e informações semelhantes. A existência de dados e de uma base comum para o entendimento técnico é crucial para acordos ao longo do tempo. Os governos estaduais ou locais podem então organizar discussões sobre a alocação de água usando as informações do sistema de contabilidade hídrica. Essa é uma prática comum na Califórnia com relação à questão dos direitos de uso de recursos hídricos. As discussões ocorrem antes da seca, já que, durante a seca, a pressão da emergência aumenta a sensibilidade política. A maioria das decisões sobre a água é tomada localmente, onde a demanda hídrica está situada e onde ocorrem o uso da terra e outros fatores de demanda por água. Além disso, essa prática promove responsabilidades e deveres muito mais diretos aos usuários de recursos hídricos. Na Espanha, o abastecimento urbano de água é considerado um uso prioritário da água. Assim, normalmente não há compensação para outros usuários quando o uso da água é restringido ou cortado em caso de seca. No entanto, durante a seca de 2005-2006, uma oferta pública foi realizada para vender direitos de uso de águas subterrâneas com intuito de manter a vazão ecológica. Isso reduziu, com sucesso, o bombeamento. Além disso, na costa mediterrânea espanhola, tribunais tradicionais são responsáveis por resolver os conflitos pelo uso da água entre os irrigadores (Quadro 2.10).
Quadro 2.10. Tribunais dos irrigadores na costa mediterrânea espanhola
Os tribunais dos irrigadores da costa mediterrânea espanhola são tribunais tradicionais de gestão de recursos hídricos que datam do período al-Andalus (séculos IX a XIII). Os dois tribunais principais – o Consejo de Hombres Buenos de la Huerta de Murcia e o Tribunal de las Aguas de la Vega de Valencia – são reconhecidos pela lei espanhola. Inspirando autoridade e respeito, esses dois tribunais, cujos membros são eleitos democraticamente, resolvem os litígios oralmente de forma célere, transparente e imparcial. O Consejo de Hombres Buenos é composto por sete membros geograficamente representativos e tem jurisdição sobre uma assembleia de proprietários de terras composta por 23.313 membros. O Tribunal de las Aguas é composto por oito administradores eleitos que representam um total de 11.691 membros de nove comunidades. Além de seu papel jurídico, os tribunais dos irrigadores desempenham papel fundamental nas comunidades das quais são um símbolo visível, como evidenciam os ritos realizados quando os julgamentos são proferidos e o fato de que esses tribunais, frequentemente, figuram na iconografia local. Eles promovem coesão entre as comunidades tradicionais e sinergia entre os trabalhadores (guardas, inspetores, podadores etc.), contribuem para a transmissão oral de conhecimentos derivados de intercâmbios culturais centenários e utilizam vocabulário próprio e específico salpicado de termos de origem árabe. Em suma, os tribunais são repositórios de longa data da identidade local e regional e têm um significado especial para os habitantes locais.
O Tribunal de las Aguas de la Vega de Valencia é uma instituição de justiça responsável por resolver disputas decorrentes do uso da água de irrigação entre agricultores. É a mais antiga instituição de justiça existente na Europa. O Tribunal das Águas é um tribunal consuetudinário composto por um representante de cada uma das oito Comunidades de Irrigação, denominadas Curadoras. O Presidente do Tribunal é eleito entre os membros dessas Comunidades de Irrigação por um período renovável de dois anos. Todas as quintas-feiras, o Tribunal se reúne em sessão pública à tarde, ao passo que uma sessão administrativa é realizada ao final do dia para discutir diversos assuntos, principalmente a distribuição de água.
Fonte: UNESCO(2021[23]), “Irrigators’ tribunals of the Spanish Mediterranean coast: the Council of Wise Men of the plain of Murcia and the Water Tribunal of the plain of Valencia”, https://ich.unesco.org/en/RL/irrigators-tribunals-of-the-spanish-mediterranean-coast-the-council-of-wise-men-of-the-plain-of-murcia-and-the-water-tribunal-of-the-plain-of-valencia-00171.
Fortalecendo o uso de instrumentos econômicos na Bacia Hidrográfica do rio Piancó-Piranhas-Açu
Precificando e financiando gestão integrada de recursos hídricos na Bacia Hidrográfica do PPA
Três grandes desafios econômicos estão presentes na bacia do PPA. O primeiro é o financiamento da operação e manutenção (O&M) de infraestrutura de armazenamento e transporte de água bruta, fundamental para essa área semiárida. Sua importância cresceu uma vez que a transposição do rio São Francisco aumentou as esperanças de desenvolvimento socioeconômico na bacia. A bacia do PPA é carente de financiamento para O&M dos pequenos reservatórios da bacia. Aparentemente, não há provisão para cobrir O&M dessas infraestruturas na precificação dos serviços de água e saneamento ou água de irrigação. O segundo desafio é a implementação do princípio de “água paga a água”, que consiste em alocar as receitas da cobrança pelo uso de recursos hídricos à Gestão Integrada de Recursos Hídricos (GIRH, no CBH). O terceiro desafio é a alocação de água e a gestão da demanda para promover o uso eficiente da água e administrar o risco de escassez sob o ângulo do custo-benefício.
Os instrumentos de precificação (cobranças pelo uso de recursos hídricos, mercados de água) são relevantes para enfrentar os três desafios. Eles criam incentivos para reduzir a demanda hídrica e alocar a água de forma custo-efetiva. Eles arrecadam recursos para financiar a infraestrutura e a GIRH. Uma estrutura conceitual foi proposta para criar instrumentos de precificação e financiamento na bacia do PPA (Figura 2.6). A cobrança pelo serviço de adução de água bruta (user charge) e a cobrança pelo uso dos recursos hídricos (abstraction charge), conforme estabelecidas na Lei das Águas de 1997, têm objetivos diferentes. A cobrança pelo serviço de adução de água bruta visa a recuperar os custos dos serviços de oferta de água (pagamento com contrapartida). A cobrança pelo uso de recursos hídricos visa a gerir os recursos hídricos e deve contribuir para o orçamento geral (pagamento sem contrapartida). Embora limitando a flexibilidade no uso de fundos públicos, mas melhorando a aceitabilidade pública/política da cobrança pelo uso de recursos hídricos, isso representa a aplicação do princípio "a água paga a água". Esse princípio também pode ser aplicado no caso de um sistema cap-and-trade de leilão de direitos de uso da água, alocando os proventos do leilão à GIRH.
Os grandes usuários de água bruta devem financiar a O&M da infraestrutura de armazenamento e transporte (reservatórios e Projeto de Integração do São Francisco - PISF), por meio da cobrança pelo serviço de adução de água bruta (user charges), conforme a própria definição da cobrança (pagamento em contrapartida pela prestação de serviços) (Figura 2.6). O valor pode ser repassado ao consumidor final na conta de água (ou seja, a cobrança pelo uso da água). Como regra geral, tal como acontece com as infraestruturas urbanas de abastecimento de água, recorrer a financiamento público para a O&M de infraestruturas de água bruta deve ser considerada uma medida temporária e as cobranças ao usuário (pelo serviço de adução de água bruta) devem, ao longo do tempo, recuperar todos os custos para garantir a sustentabilidade financeira dos operadores de infraestruturas.
Financiando operação e manutenção da infraestrutura de armazenamento e transporte de água
O financiamento da operação e da manutenção (O&M) de grandes infraestruturas de armazenamento (água bruta) é essencial para a segurança do abastecimento de água na bacia do PPA. O governo federal arca com os custos de capital de todos os principais projetos federais de infraestrutura de água bruta, mas não é responsável pelos custos de O&M. Na prática, os pagamentos das agências estaduais (AESA e IGARN) ao operador dos reservatórios federais (DNOCS) para receber água bruta cobrem apenas parte dos custos de O&M dos reservatórios federais. O DNOCS (ou seja, o tesouro nacional) cobre a diferença. Recentemente, o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) apresentou ao Congresso projeto de lei para obrigar os usuários a cobrir os custos de operação e manutenção dos reservatórios federais.
O mesmo princípio deve ser aplicado para cobrir os custos de O&M do PISF quando ele entrar em operação. Em outras palavras, os usuários de recursos hídricos nos quatro estados atendidos pelo PISF (Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte) devem pagar ao seu operador federal (CODEVASF) o suficiente para financiar integralmente os planos de O&M. A ANA (na qualidade de reguladora de água e saneamento desde 2020) planeja revisar a estrutura das cobranças pelo uso de recursos hídricos para permitir a recuperação dos custos de O&M do PISF (estimado em US$ 53 milhões por ano para os quatro estados atendidos pelo PISF). Uma nova estrutura consistiria de dois componentes: uma cobrança permanente (US$ 0,05/m3) para cobrir os custos fixos de O&M do PISF, e uma cobrança volumétrica adicional (US$ 0,09/m3) para recuperar o custo de bombeamento de água do PISF (principalmente o custo de energia elétrica). As mesmas estruturas e taxas de cobrança se aplicariam aos quatro estados atendidos pelo PISF. O financiamento de O&M de outras infraestruturas de água bruta (não federais) ficaria a critério da política estadual de recursos hídricos.
A falta de uma política explícita de recuperação de custos para a O&M da infraestrutura ameaça a sustentabilidade da oferta de água bruta. Uma solução simples é que os usuários de recursos hídricos paguem o custo total de operação e manutenção da infraestrutura de abastecimento de água bruta. Em outras palavras, a AESA, o IGARN e qualquer outro grande usuário de água (por exemplo, cidades, associações de irrigação) deveriam pagar pelo uso de recursos hídricos à CODEVASF e ao DNOCS para cobrir os custos de O&M dos reservatórios e do PISF. Da mesma forma, no caso da infraestrutura não-federal de abastecimento de água bruta, os custos de O&M deveriam ser totalmente ressarcidos pelos usuários. Além disso, as cobranças criam um estímulo para reduzir o consumo de água (e melhorar a eficiência do uso da água), incentivando mudanças de comportamento.
Todos os grandes usuários de água deveriam pagar os custos de O&M igualmente (a taxa de cobrança volumétrica para todos) para melhorar a viabilidade (por exemplo, a aceitabilidade pública) e transmitir a todos a mesma mensagem quanto à conservação da água. Para manter a mensagem referente à conservação para todos, qualquer subsídio cruzado entre setores de água bruta (por exemplo, entre cidades e associações de irrigação) deveria ser implementado separadamente, por exemplo, introduzindo uma taxa adicional sobre a cobrança de cidades, cujas receitas seriam redistribuídas para associações de irrigação.
O apoio financeiro público para perímetros irrigados coletivos equivale a subsidiar os custos de fornecimento de água para irrigação na produção agrícola, que está sujeita às regras de subsídios da Organização Mundial do Comércio (OMC)(Kibel, 2014[24]). Essa prática desvirtua o uso da água ao incentivar a irrigação em detrimento de outros usos da água. A gestão dos recursos hídricos de irrigação poderia ser mais produtiva se direcionasse os recursos públicos para pagamentos diretos, a fim de ajudar os produtores rurais a comprar tecnologias para economia de água nas propriedades (por exemplo, irrigação por gotejamento).
Um argumento a favor do financiamento público para O&M de infraestruturas de armazenamento e transporte de água bruta é o benefício público, como a regulação da vazão de rios, água adicional para o meio ambiente, etc. Debates sobre os impactos e os benefícios da infraestrutura de abastecimento de água bruta deveriam ser documentados e fundamentados em argumentação técnica e científica para informar a formulação de políticas públicas. Se benefícios públicos forem demonstrados, eles poderiam justificar a cobertura dos custos de O&M pelo CBH, como parte de seu papel como autoridade de GIRH para a bacia hidrográfica do PPA. Isso implica o financiamento do CBH por meio da alocação de receitas das cobranças pelo uso de recursos hídricos, de acordo com o princípio "a água paga a água" implementado no Brasil. Na França, por exemplo, em 2021, a Agência de Água de Adour-Garonne destinou 4 milhões de euros para apoiar as comunidades locais na adequação de suas barragens ao objetivo de "recuperar os volumes inicialmente disponíveis e melhorar sua gestão em benefício do meio ambiente”. Emblematicamente, o CBH poderia fornecer assistência financeira para O&M, se a infraestrutura proporcionasse benefício ambiental e não apenas benefício econômico. Ao promover benefícios ambientais, o “esverdeamento” da infraestrutura de água bruta (por exemplo, com a busca de co-benefícios para a biodiversidade ou para o clima, por meio do plantio de árvores ao longo dos canais ou a montante dos reservatórios) aumentaria a aceitabilidade do apoio ao CBH.
A criação de mais espaço para a infraestrutura de água “verde” permitiria a aplicação do princípio do beneficiário-pagador. Isso implicaria solicitar aos beneficiários (cidades, atividades econômicas) da bacia do PPA que remunerassem os serviços de regulação da vazão dos rios abastecidos pelos ecossistemas. O CBH ainda poderia fornecer assistência financeira para a O&M de infraestruturas de água “verde” (por exemplo, pântanos, planícies aluviais, florestas aluviais), já que proporcionam benefícios ambientais. O Corpo de Engenheiros do Exército dos EUA criou o Engineering with Nature: An Atlas, uma compilação de 118 projetos implementados em todo o mundo que mostra os benefícios e a diversidade das soluções baseadas na natureza (SBN), e como eles podem ser implementados.
Painéis solares flutuantes já podem ser vistos na bacia do PPA (no estado da Paraíba), com impacto nos recursos hídricos. Os possíveis efeitos de cobrir um reservatório com painéis solares flutuantes incluem, mas não se limitam a: redução da misturas dos reservatórios pela ação do vento, mudança na flora, fauna e organismos relacionados (pássaros, peixes, plantas aquáticas, mexilhões, insetos, algas, bactérias, vírus, etc.) presentes no reservatório ou a sua volta (Mathijssen et al., 2020[25]). O operador dos painéis solares deveria fornecer compensação financeira ao operador da infraestrutura hídrica pelos efeitos colaterais na vida aquática e na qualidade da água. O valor da compensação deveria ser utilizado para proteger e restaurar a vida aquática e a qualidade da água. No entanto, uma parte poderia ser destinada ao financiamento da O&M da infraestrutura de água bruta, o que equivaleria a aplicar uma espécie de princípio “a eletricidade paga a água".
Mesmo que tenha sido usada principalmente para promover o desenvolvimento urbano (princípio “cidade paga a cidade”), a captura de valor pode ser considerada uma ferramenta para o financiamento da infraestrutura de água bruta (Inter-American Development Bank, 2016[26]). Em outras palavras, o aumento do valor das terras atendidas por infraestruturas de água bruta poderia ser tributado durante um período específico e as receitas fiscais, destinadas à O&M dessa infraestrutura (princípio “a terra paga a água”). O Brasil possui sistema tributário vinculado ao valor da terra, tanto em áreas urbanas (Imposto Predial e Territorial Urbano, IPTU) quanto em áreas rurais (Imposto Territorial Rural, ITR). Esses impostos poderiam refletir, parcialmente, o aumento do valor da terra e da propriedade resultante da construção de infraestrutura hídrica. No entanto, a destinação da receita não é vinculada e depende do executivo local. A arrecadação é de competência municipal
Todas essas fontes de financiamento poderiam ser mobilizadas para facilitar a transição para a recuperação total dos custos de O&M por meio de cobranças pelo serviço de adução de água bruta e, no caso da infraestrutura “verde”, por meio de pagamentos por serviços ecossistêmicos (Figura 2.7).
O financiamento da O&M da infraestrutura de água bruta por meio de cobranças aplicadas aos grandes usuários de água, conforme exigido pelo princípio do usuário-pagador, levanta a questão da precificação da água para os usuários finais que absorverão essas cobranças. As tarifas por si só deveriam ser suficientes para recuperar os custos de operação e manutenção da infraestrutura de oferta de água. Contar com o orçamento público para complementar as receitas tarifárias facilitaria a obtenção de ajuda reembolsável (empréstimos, títulos, ações). No entanto, essa abordagem de “recuperação sustentável de custos” deve ser vista como um passo intermediário em direção ao objetivo final de “recuperação total de custos” (Cox and Börkey, 2015[27]).
O Termo de Compromisso de 2006 entre o Governo Federal e os estados estabeleceu que os custos operacionais e de manutenção do PISF seriam cobertos pelos estados. Embora os estados tenham concordado em estabelecer tarifas, o termo não especifica que apenas os proprietários pagariam. Dois estados da região do PISF (Ceará e Paraíba) já cobram pelo uso de recursos hídricos e isso afeta todos os setores, incluindo a irrigação. No entanto, as receitas são insuficientes para cobrir os custos de O&M do PISF. Além do caso do PISF, irrigantes em distritos de irrigação coletiva e pública podem pagar tarifas para cobrir os custos de O&M da irrigação. Nesses casos, as tarifas pelo uso de recurso hídrico são uma obrigação estabelecida pelo operador estadual, mas não cobririam os custos adicionais relacionados ao PISF.
Com o estabelecimento de um teto para a tarifa de baixo consumo, o aumento das tarifas em bloco (increasing block tariffs - IBT) transmite uma mensagem mais forte quanto à conservação, em comparação com as tarifas volumétricas simples, mas acarreta custos administrativos mais altos. As cobranças ao usuário (pelo serviço de adução de água bruta) necessárias para cobrir os custos totais de operação e manutenção de água bruta (reservatórios e PISF) aumentarão o valor da conta de água para os usuários finais. As questões de acessibilidade precisam ser abordadas. A precificação social da água no varejo pode ser considerada por meio da diferenciação da tarifa volumétrica ou do tamanho do primeiro bloco (bloco barato), ou ambos, com uma tarifa mais baixa ou bloco de maior tamanho para famílias de rendas mais baixas (por exemplo, as que recebem benefícios sociais). A mensagem quanto à conservação de água seria, no entanto, mais bem resguardada com o estabelecimento da mesma tarifa volumétrica/tamanho do bloco para todos, mas acrescentando uma taxa adicional na conta de água dos ricos e redistribuindo a renda aos mais pobres para ajudá-los a pagar a conta de água (subsídio cruzado entre ricos e pobres). O mesmo raciocínio se aplica aos irrigantes.
O baixo nível de vida (PIB per capita) na Bacia Hidrográfica do rio Pianco-Piranhas-Açu não deve ser um obstáculo para a recuperação dos custos de operação e manutenção da infraestrutura de água bruta por meio de cobrança pelo uso de recursos naturais (e, em última análise, contas de água), considerando os benefícios de uma infraestrutura hídrica bem conservada para o bem-estar da população da bacia. Por exemplo, a área irrigada ou os ganhos de produtividade podem resultar em melhoria à saúde. O risco de falta de energia que o Brasil conheceu nos últimos anos devido a níveis insuficientes de água em barragens hidrelétricas deve sensibilizar as partes interessadas na bacia do PPA para a necessidade de garantir O&M adequada para a infraestrutura de água bruta na bacia.
Implementando o princípio de que a “a água paga a água”
O princípio de “a água paga a água” consiste em atribuir os valores da cobrança pelo uso de recursos hídricos (water abstraction charges) auferidos na bacia do PPA à gestão da bacia do PPA. A OCDE (2017[28]) avaliou o sistema de cobranças pelo uso de água no Brasil e sugeriu possíveis aperfeiçoamentos (Quadro 2.11). A OCDE (2017[28]), também forneceu uma lista de verificação (checklist) para ajudar o Brasil a implementar a cobrança pelo recursos hídricos (water charges) (Quadro 2.12).
Quadro 2.11. Avaliação e recomendações da OCDE (2017) sobre as cobranças pelo uso de recursos hídricos no Brasil
Situação das cobranças pelo uso de recursos hídricos no Brasil
Desde 2015, cinco bacias hidrográficas interestaduais (águas federais) e de seis estados (águas estaduais) aplicam cobranças (user charges), incluindo o estado da Paraíba. A bacia hidrográfica do PPA e o estado do Rio Grande do Norte estão apenas começando a discutir a viabilidade de implementar essas cobranças.
Contudo, a experiência com cobranças pelo uso de recurso hídrico tem muitas limitações:
Primeiro, as cobranças são muito baixas e não são projetadas para influenciar o comportamento dos usuários.
Segundo, as cobranças existentes não levam em consideração o risco de escassez ou de secas no âmbito local - sua estrutura e seu nível são similares em todo o país - nem refletem os custos de oportunidade do uso de recursos hídricos na bacia onde são aplicadas.
Em terceiro lugar, o valor da cobrança é projetado principalmente com base em critérios de acessibilidade e competitividade, o que deveria ser mais bem avaliado de modo a não prejudicar o incentivo ao enfrentamento do risco de escassez ou de secas.
Em quarto lugar, a definição do valor da cobrança pelos comitês das bacias hidrográficas cria tensões entre o governo e os usuários e dificulta qualquer aumento desse valor. A tomada de decisões baseada nos riscos individuais dos usuários ajudaria a gerir os conflitos de escolhas (trade-offs) entre as partes interessadas na bacia e faria melhor uso das receitas geradas pelas cobranças (baseado em análise de risco-benefício dos projetos propostos para a bacia).
Caminhos futuros
As cobranças deveriam ser concebidas para reduzir os riscos hídricos na bacia onde são aplicadas e proporcionar benefícios visíveis para aumentar a aceitação dos usuários de arcar com elas. Pragmaticamente, a prioridade poderia ser a de visar aos que fazem as maiores aduções de água a fim de maximizar os benefícios em termos de gestão do risco de escassez e de aumento da receita, bem como minimizar os custos operacionais da implementação das cobranças. Da mesma forma, a estrutura e o valor das cobranças poderiam ser projetados, a grosso modo, como um primeiro passo para iniciar o processo e enviar sinais de incentivo aos grandes usuários de água.
Para serem mais rentáveis, as cobranças deveriam ser combinadas com outros instrumentos, tais como regimes de alocação de água, vazões fluviais ecológicas mínimas (regulação direta) e a promoção das melhores tecnologias disponíveis (medidas de informação). As cobranças e as suas receitas deveriam ser partes integrantes dos planos de recursos hídricos que estabelecem as prioridades e os níveis almejados para a gestão de risco de escassez e deveriam guiar as estratégias de financiamento de projetos. Os projetos deveriam ser proporcionais à capacidade de arrecadação e proporcionar benefícios visíveis aos usuários de água na bacia. O princípio de "água paga a água" deve ser introduzido de modo que os comitês de bacia possam eficazmente utilizar o recurso arrecadado por meio das cobranças.
O efeito das cobranças na acessibilidade das contas de água (sobre as quais elas recaem) e a competitividade dos usuários de água precisam ser documentados. Questões relacionadas à acessibilidade e à competitividade deveriam ser tratadas com medidas complementares específicas, ao invés de isenção ou redução de cobranças. A realocação de parte da receita proveniente das cobranças para ressarcir os usuários melhoraria sua aceitação.
O Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), criado em 1997 no âmbito federal, e os Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos (CERHs) deveriam fornecer orientações/critérios claros sobre o estabelecimento de valores de cobranças e sobre a utilização das receitas delas advindas. Isso deveria incluir limites de valores (rate bounds), requisitos de monitoramento e aplicação, avaliação de efeitos colaterais, tais como recorrer a fontes de água não tarifadas, avaliação prévia de custos e benefícios, além de publicidade da contabilidade. Esses critérios deveriam ter como objetivo estabelecer preços de acordo com os riscos locais de escassez.
Os estados onde se localizam as bacias deveriam seguir as recomendações do comitê de bacia hidrográfica e coordenar o estabelecimento de cobranças pelo uso de recursos hídricos. Para isso e para uma melhor gestão integrada dos recursos hídricos da bacia em geral, uma única agência de águas deveria ser criada nas bacias interestaduais.
Fonte: OECD (2017[28]), Water Charges in Brazil: The Ways Forward, https://doi.org/10.1787/9789264285712-en.
Quadro 2.12. Cobrando pela captação e pela descarga: Uma lista de verificação
Como o esquema de cobranças se ligará aos sistemas de outorga?
Como o esquema de cobrança se ajustará a outros mecanismos para gerir os recursos hídricos, especialmente o uso de outorgas para estabelecer os limites e as condições de captação e descarga? Como os sistemas de outorga e monitoramento de conformidade assegurarão que as cobranças sejam calculadas de forma justa e precisa?
O ideal seria identificar os locais de todas as captações e as descargas (ou quase todos, se uma abordagem baseada em riscos for adotada) e controlá-los mediante outorgas respaldadas em monitoramento e aplicação rotineira de conformidade, quando necessário. Assim, as outorgas formariam a base para o esquema de cobrança e para a cobrança específica relacionada a cada usuário. Todas as captações teriam um meio de mensuração projetado para assegurar o cumprimento dos limites volumétricos. Outras condições de licenciamento, tais como restrições à adução em vazões baixas, também teriam uma forma de garantir a conformidade. A descarga também deveria ter limite volumétrico e meios de medição, assim como limites de emissão para proteger o meio ambiente e a saúde humana em parâmetros de descarga. Deveria haver uma base pré-estabelecida para monitorar a qualidade da descarga, a uma frequência que indicasse que os resultados fossem estatisticamente significativos, auditáveis e apropriados ao tipo de processo envolvido.
Criando o esquema de cobrança
Como se estruturam as cobranças para que se alinhem aos objetivos das políticas? Tanto para as captações quanto para a descarga, deve-se utilizar o volume autorizado na outorga ou os volumes reais captados ou descartados? Estes últimos requerem maior esforço fiscalizatório: o usuário da água ou o seu fiscalizador precisará registrar e informar os volumes; deverá haver um meio de medição com precisão certificada (como, por exemplo, um medidor calibrado) porque, caso contrário, poderá haver cobrança a mais ou a menos. O sistema de cobrança também deve ser capaz de calcular diferentes tarifas de acordo com o volume medido e com a frequência de cobrança escolhida.
Deseja-se estabelecer uma cobrança administrativa adicional para cobrir os custos de gestão e avaliação técnica referente a pedidos de novas outorgas ou revisões das existentes?
Deseja-se que as cobranças pelo uso dos recursos hídricos indiquem o grau de estresse hídrico e incentivem a redução do consumo? E o que significa "estresse hídrico" ou "escassez hídrica"? Se for um estresse resultante de captações excessivas, dependerá apenas das cobranças para alcançar-se um equilíbrio sustentável com o recurso disponível ou também se adotarão outras medidas para reduzir a adução (como, por exemplo, comprando direitos de uso da água (entitlements) ou compulsoriamente reduzindo os volumes autorizados)? Se a escassez for mais dinâmica, como por exemplo, devido à baixa pluviosidade e ao risco de secas, o que desencadeará a resposta de cobrança? E como garantir que os usuários estejam cientes do que está acontecendo de forma dinâmica e, sempre que possível, tenham acesso a recomendações sobre como reduzir seu consumo?
Quanto à descarga, que mensagens se pode transmitir aos poluidores e qual seria o custo do ato de poluir? Há o desejo de incentivar a redução da carga poluidora de substâncias tóxicas? As outorgas especificam os limites de, por exemplo, pesticidas, hidrocarbonetos, metais, cianetos etc.? E como se pretende incluir isso no esquema de cobranças por meio de uma escala móvel que vai do resfriamento da água até a descarga de água advinda de processos químicos e de mineradoras? Se a meta for dispor de água de melhor qualidade para proteger a saúde humana e apoiar ecossistemas-alvo, pode-se usar a cobrança para alcançar isso mais rapidamente que por meio de limites progressivamente mais rigorosos nas outorgas baseadas em padrões de qualidade ambiental?
Deseja-se enviar sinais claros sobre o valor dos efluentes como um recurso? Em outras palavras, onde, quando e em que volumes a descarga de efluentes é importante para outros usuários de água (dada que a qualidade esteja dentro dos limites permitidos) e, embora estas questões possam ser especificadas nas outorgas, há intenção de recompensar a descarga que beneficia os recursos? Do mesmo modo, deseja-se penalizar as captações por meio de cobranças mais altas onde o retorno líquido é baixo porque a água evaporou, foi incorporada a um produto, perdeu-se devido a vazamentos ou foi absorvida pela produção agrícola?
Como se garantirá que os esquemas de cobrança sejam flexíveis e adaptáveis às mudanças na demanda hídrica, ao estresse ambiental, às mudanças climáticas e às secas? E que mecanismo de feedback poderá ser criado para permitir revisões periódicas de sua eficácia?
Fonte: OECD (2017[28]), Water Charges in Brazil: The Ways Forward, https://doi.org/10.1787/9789264285712-en.
A Lei das Águas de 1997 introduziu a cobrança pelo uso de recurso hídrico e estipulou a alocação da receita das cobranças para projetos de gestão hídrica na bacia onde foi coletada. Entretanto, questões de viabilidade (aceitação pública/política) retardaram a introdução dessas cobranças no Brasil. Apenas alguns estados as aplicam, como o Ceará e a Paraíba.
Desde 2015, três bacias hidrográficas no estado da Paraíba introduziram cobranças pelo uso de recursos hídricos. Contudo, sua implementação é lenta, com uma taxa de recuperação inferior a 10% em 2017 (OECD, 2017[28]). A AESA arrecadou US$ 890.000 em cobranças em 2020. Esta quantia foi totalmente destinada a projetos de reuso de águas residuais na agricultura nas três bacias e para O&M dos reservatórios estaduais. No estado do Rio Grande do Norte, a introdução de tais cobranças tornou-se algo politicamente difícil em razão da seca (OECD, 2017[28]).
Discussões estão em andamento para introduzir cobranças pelo uso dos recursos hídricos na bacia hidrográfica do PPA e alocar parte das receitas para financiar O&M do PISF. Isso poderia ser justificado se os benefícios públicos do PISF fossem demonstrados. Enquanto isso, a ausência de cobranças na bacia hidrográfica do PPA compromete seriamente o financiamento do plano da bacia hidrográfica (presumindo a implementação do princípio de que a água paga a água). De fato, a sustentabilidade financeira do CBH é essencial na busca de sinergias entre a alocação da água e a gestão integrada de recursos hídricos (GIRH) (Figura 2.8).
A cobrança pelo uso dos recursos hídricos visa a proteger os corpos hídricos do risco de escassez. Na França, a Agência de Águas de Adour-Garonne, por exemplo, estipula valores diferentes de cobrança, dependendo da natureza e da fragilidade do recurso hídrico extraído. Da mesma forma, a alocação das receitas das cobranças ao CBH (aplicando o princípio “a água paga a água”) deve, em primeiro lugar, visar a evitar os riscos de escassez de água através da GIRH.
O valor de cobrança não deveria variar de acordo com a categoria do usuário, como é frequentemente o caso nos países da OCDE, onde os agricultores e, às vezes, a indústria se beneficiam de tarifas preferenciais. No caso das cobranças pelo uso da água, uma demonstração da conservação da água seria mais percebida estabelecendo-se o mesmo piso tarifário para todos os captadores, mas acrescentando-se uma taxa adicional sobre os captadores ricos e redistribuindo a renda para os mais desfavorecidos para ajudá-los a pagar o piso tarifário (subsídio cruzado entre os captadores). Uma outra forma de conceder subsídios cruzados entre os captadores ricos e os mais carentes, sem comprometer os incentivos à economia de água, seria alocar mais receitas das cobranças aos desfavorecidos, com valores superiores ao que eles pagam. É o que a Agência de Águas Adour Garonne faz para o setor agrícola (“o princípio da solidariedade”).
Ao invés de uma simples cobrança volumétrica, conforme implantada pela Agência de Águas Adour-Garonne, poderiam ser consideradas cobranças pelo uso de recursos hídricos com uma estrutura de blocos aumentada, com um primeiro bloco de tamanho reduzido para os corpos d’água com alto risco de escassez. Qualquer subsídio de eletricidade para os captadores deve ser eliminado antes da introdução de cobrança. O Quadro 2.13 apresenta visão geral do funcionamento das cobranças pelo uso de recursos hídricos na França.
Quadro 2.13. Cobranças pelo uso dos recursos hídricos na França
As cobranças pelo uso dos recursos hídricos foram introduzidas na França em 1964, quando as seis Agências de Águas foram criadas. A receita das cobranças é arrecadada e redistribuída pelas Agências para investimentos em proteção e melhoria dos recursos hídricos em suas respectivas bacias. A cobrança deve ser paga por todos aqueles que captam água acima de um limite estabelecido por cada agência (que não pode ser superior a 10.000 m3 por ano ou 7.000 m3 em áreas onde há escassez hídrica). Estão isentas a adução de água do mar, as captações relacionadas à aquicultura, as captações fora do período de níveis baixos e aquelas destinadas à restauração de áreas naturais.
As Agências de Águas concedem subsídios aos usuários de recursos hídricos (agricultores, municípios e indústrias) financiados pelas cobranças pelo uso dos recursos hídricos e pelas tarifas de poluição, pagas por todos os usuários de água com valores diferenciados em cada bacia hidrográfica. Para municípios e usuários domésticos, essas cobranças são arrecadadas pelos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário (water and sanitation services - WSS) e depois transferidas para a Agência de Águas. Essas cobranças correspondem, até certo ponto, aos custos dos recursos, definidos como os custos de oportunidade da utilização da água, como um recurso escasso, de uma forma determinada (como, por exemplo, por meio de adução ou descarga de águas residuais), no tempo e no espaço. Os custos dos recursos equivalem à diferença entre o valor econômico em termos de benefícios líquidos do uso presente ou futuro da água (como, por exemplo, a alocação de licenças de emissão ou de adução de água) e o valor econômico em termos dos benefícios líquidos do melhor uso alternativo da água (presente ou futuro). Os custos dos recursos só surgem se o uso alternativo da água gerar valor econômico maior que o uso presente ou futuro previsto (ou seja, a diferença entre os benefícios líquidos é negativa). Os custos dos recursos, portanto, não estão necessariamente limitados apenas ao esgotamento dos recursos hídricos (em termos de quantidade ou qualidade da água). Eles surgem por causa de uma alocação ineficiente (em termos econômicos) da água e/ou da poluição, ao longo do tempo e entre diferentes usuários dos recursos hídricos. Normalmente, os custos ambientais e de recursos são parcialmente recuperados por meio de impostos e cobranças ambientais (cobranças pelo uso de recurso hídrico e poluição).
As tarifas são mais altas para a água potável. Além disso, as tarifas são diferenciadas de acordo com a fonte (água subterrânea ou superficial), zona, a relativa escassez hídrica e a pressão que a extração exerce sobre os recursos hídricos disponíveis. Como resultado, a taxa por m3 de água extraída pode variar consideravelmente. Por exemplo, as tarifas aplicadas pela Agência de Águas Adour-Garonne entre 2019-24 variam de 0,03 centavos de euro/m3 para o enchimento de canais, em uma área sem déficit hídrico, até 5,8 centavos de euro/m3 para a adução de água potável, em áreas deficitárias (Tabela 2.3).
A cobrança pelo uso dos recursos hídricos reflete o princípio “a água paga a água” e é geralmente aceita como pagamento justo pelo uso de um recurso escasso. Entretanto, as tarifas são muito baixas para terem impacto significativo no consumo de água, tornando o instrumento mais uma ferramenta de aumento de receita que em um incentivo econômico.
Tabela 2.3. Tarifas pelo uso de recurso hídrico na bacia Adour-Garonne
Tipo de uso |
Áreas com escassez hídrica |
Outras áreas |
||||
---|---|---|---|---|---|---|
Tarifas aplicadas em 2019-24 |
Limite máx. estabelecido por lei |
Tarifas aplicadas em 2019-24 |
Limite máx. estabelecido por lei |
|||
Águas superficiais |
Águas subterrâneas |
Águas superficiais |
Águas subterrâneas |
|||
Centavos de euro/m3 |
Centavos de euro/m3 |
|||||
Irrigação por gravidade |
1.0 |
1.0 |
1.0 |
0.5 |
0.5 |
0.5 |
Outros tipos de irrigação |
1.22 |
0.73 |
7.2 |
0.92 |
0.55 |
3.6 |
Água potável |
5.8 |
3.5 |
14.4 |
4.4 |
2.6 |
7.2 |
Refrigeração industrial |
0.182 |
0.109 |
1.0 |
0.137 |
0.082 |
0.5 |
Enchimento de canais |
0.06 |
0.06 |
0.06 |
0.03 |
0.03 |
0.03 |
Outros usos econômicos |
1.57 |
0.94 |
10.8 |
1.18 |
0.71 |
5.4 |
Fonte: Nota sobre as deliberações do Conselho Diretor da Agência de Águas Adour-Garonne em 19 de setembro de 2018.
Outra questão é a distribuição do ônus entre os usuários por residirem a montante/a jusante ou em meio urbano/rural, com base no “princípio da solidariedade”, com as residências pagando muito mais que a produção agrícola e a indústria. A diferenciação da tarifa correspondente contradiz o princípio do poluidor-pagador. Na Agência de Águas Adour-Garonne, por exemplo, 65% da receita das cobranças pelo uso dos recursos hídricos é paga pelas empresas de água potável (e repassada à conta de água), que representa valor muito superior a sua participação de 11% no uso dos recursos hídricos (Tabela 2.4).
Tabela 2.4. Volume aduzido e cobrança na bacia Adour-Garonne
Setor usuário da água |
Adução de água |
Receita das cobranças |
||
---|---|---|---|---|
Milhões de m3/ano |
% |
Milhões de euros/ano |
% |
|
Residências |
720 |
11 |
40 |
65 |
Agricultura |
900 |
14 |
8 |
13 |
Refrigeração industrial |
4 700 |
71 |
1 |
2 |
Energia hidrelétrica |
- |
- |
7 |
11 |
Outros usos econômicos |
320 |
5 |
6 |
10 |
Total |
6 640 |
100 |
62 |
100 |
Obs.: = uso não-consuntivo.
Fonte: Agência da Água de Adour-Garonne(2021[30]), Site, https://www.eau-grandsudouest.fr/(acessado dezembro 2021).
Na bacia do PPA, existem graves problemas relativos à qualidade da água. Em algumas unidades de planejamento dentro da bacia, cerca de 85% do esgoto não é tratado. Os municípios são responsáveis pelo saneamento, mas têm recursos financeiros limitados para instalarem tratamento adequado. Esta questão é comum em muitos países em todo o mundo e a combinação de serviços pode ser um caminho a ser seguido. Na Espanha, o saneamento é geralmente feito no âmbito intermunicipal, permitindo, assim, um mecanismo de solidariedade financeira entre grandes e pequenos municípios. Pequenos vilarejos que não têm condições de arcar com os custos do tratamento da água participam do planejamento e da gestão de recursos hídricos no âmbito intermunicipal. Alguns municípios trabalham com operadores privados por meio de parcerias público-privadas para a concessão ou contrato de arrendamento (como, por exemplo, em Valência). Na França, as cobranças pela poluição da água são diferenciadas de acordo com os usuários, tais como residências, agricultura e indústria - embora elas possam ser as mesmas entre os usuários. As cobranças pela poluição de origem doméstica são baseadas no consumo de água da residência. A Tabela 2.5 compila a cobrança por poluição para usuários domésticos da bacia do rio Adour-Garonne e a Tabela 2.6, as cobranças para usuários não-domésticos. Essas cobranças contrastam com aquelas referentes à pecuária e à poluição de origem não-doméstica, como a agricultura e as indústrias, que se baseiam, respectivamente, no número de animais (acima de determinável nível) e na descarga de poluentes.
Tabela 2.5. Cobrança por poluição para usuários domésticos na bacia do rio Adour-Garonne, França
Ano |
2013 |
2014 |
2015 |
2016 |
2017 |
2018 |
Limite máximo estabelecido por lei |
Cobrança por poluição (euro/m3) |
0.3 |
0.305 |
0.31 |
0.315 |
0.32 |
0.33 |
0.5 |
Tabela 2.6. Cobrança por poluição para usuários não domésticos da bacia do rio Adour-Garonne, França
Principais poluentes |
Cobranças por poluição (em euros por unidade) |
Limite máximo estabelecido por lei |
|||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
2013 |
2014 |
2015 |
2016 |
2017 |
2018 |
||
Total de sólidos dissolvidos (por kg) |
0.119 |
0.122 |
0.124 |
0.127 |
0.129 |
0.132 |
0.3 |
Demanda química de oxigênio (DQO por kg) |
0.074 |
0.076 |
0.077 |
0.079 |
0.081 |
0.082 |
0.2 |
Demanda bioquímica de oxigênio em 5 dias (por kg) |
0.149 |
0.152 |
0.155 |
0.158 |
0.161 |
0.164 |
0.4 |
Nitrogênio (por kg) |
0.3 |
0.305 |
0.31 |
0.315 |
0.32 |
0.33 |
0.7 |
Nitratos, nitritos (por kg) |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0.3 |
Fósforo (por kg) |
0.4 |
0.41 |
0.42 |
0.43 |
0.44 |
0.44 |
0.2 |
Metóxi (por kg) |
0.7 |
0.71 |
0.73 |
0.74 |
0.76 |
0.77 |
3.6 |
Metóxi para águas subterrâneas (por kg) |
6 |
6 |
6 |
6 |
6 |
6 |
6 |
Alta toxicidade (por kiloequitox) |
6.7 |
6.8 |
7 |
7.1 |
7.2 |
7.4 |
18 |
Alta toxicidade nas águas subterrâneas (por kiloequitox) |
30 |
30 |
30 |
30 |
30 |
30 |
30 |
Substâncias perigosas para o meio ambiente nas águas superficiais (por kg) |
3 |
4 |
5 |
10 |
|||
Substâncias perigosas para o meio ambiente nas águas subterrâneas (por kg) |
3 |
4 |
5 |
16.6 |
|||
Sais dissolvidos (m3 [siemens/centímetro]) |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0 |
0.15 |
Água aquecida no mar, exceto no inverno (por megathermie) |
1.26 |
1.29 |
1.31 |
1.34 |
1.37 |
1.4 |
8.5 |
Água aquecida nos rios, exceto no inverno (por megathermie) |
1.26 |
1.29 |
1.31 |
1.34 |
1.37 |
1.4 |
8.5 |
Fonte: OECD (2017[28]), Water Charges in Brazil: The Ways Forward, https://doi.org/10.1787/9789264285712-en.
Promovendo o uso eficiente da água
Sistemas de outorgas negociáveis podem gerir o risco de escassez hídrica de forma rentável. A comercialização da água refere-se ao processo de compra e venda de direitos de uso da água. Os termos da comercialização podem ser permanentes ou temporários, dependendo do status legal dos direitos sobre os recursos hídricos. Alguns economistas argumentam que a comercialização da água pode promover alocação de água mais eficiente porque preços baseados no mercado atuam como incentivo para os usuários alocarem recursos de atividades de baixo valor em atividades de alto valor. Debate-se até que ponto os mercados de água, na prática, operam eficientemente e quais são os resultados sociais e ambientais desses programas de comercialização de água e a ética da aplicação de princípios econômicos a um recurso como a água. Os mercados de comercialização de água foram estabelecidos em alguns países do mundo, incluindo a Austrália, o Chile e os Estados Unidos. No Arizona e na Califórnia, esses mercados são utilizados para realocar outorga de direitos de uso de recursos hídricos (water rights) entre os agricultores e os municípios, especialmente durante as secas. Esses mercados geram receitas para os agricultores porque é mais barato para os municípios pagar os agricultores para não usarem a água que construir novas instalações hídricas.
No Brasil, os direitos de uso da água podem ser concedidos tanto a entidades públicas quanto privadas. A outorga de direito de uso de recursos hídricos não transfere a propriedade dos recursos hídricos, mas permite o seu uso por um período de tempo estabelecido, sob condições específicas (OECD, 2017[28]). Um projeto de lei para introduzir mercados de água foi apresentado ao Congresso em 2017, mas o texto ainda não foi analisado.
O estabelecimento de um mercado de água requer a fixação de um limite à adução que seja aceitável para todas as partes interessadas, incluindo o meio ambiente e as comunidades locais. A abordagem mais econômica para realizar isso consiste em construir uma “matriz de risco” que ajude a gerenciar conflito de escolhas (trade-offs) entre os usos da água, ao mesmo tempo em que proteja a integridade dos recursos hídricos. É também a melhor maneira de se evitar conflitos sobre o uso e de desenvolver uma “cultura da água”. O primeiro passo é identificar e definir (cientificamente) o conjunto de recursos hídricos. Em segundo lugar, os riscos aos valores ambientais, culturais e sociais dependentes da água (“valores in situ”), assim como os custos de oportunidade de não extrair a água para o desenvolvimento econômico (“risco de desenvolvimento”). Em terceiro lugar, o nível aceitável de adução de água deverá ser estabelecido pela ponderação dos riscos in situ versus os riscos de desenvolvimento (matriz de risco). A sofisticação desta abordagem depende do nível de exposição aos riscos (valor dos investimentos previstos, número de populações dependentes dos recursos hídricos, presença de áreas naturais protegidas etc.).
O ideal seria que a área geográfica de um mercado de água estivesse no âmbito da bacia do PPA, por ser a bacia a unidade hidrológica mais natural. Entretanto, é comum organizar os mercados de água no âmbito da sub-bacia (de captação), como na Austrália, ou mesmo no âmbito do distrito de irrigação, como no Chile, por razões práticas (presença de medidores) ou de viabilidade administrativa. Quanto maior o número de participantes do mercado, mais econômico o mercado será na alocação da água. Idealmente, toda a água da bacia deveria estar envolvida no mercado para preservar a lógica hidrológica.
O período de validade de outorgas de direitos de uso de recursos hídricos deveria ser diferenciado de acordo com o risco de escassez, conforme mapeado na bacia do PPA, com alocações anuais para áreas em risco e direitos de uso (entitlements) de longo prazo para áreas bem abastecidas de água. Estas obteriam cotações mais altas nos mercados, pois oferecem maior segurança de abastecimento.
Parte dos lucros dos leilões dessas outorgas cobriria os custos operacionais do mercado (com corretores, etc.), mas a maior parte seria destinada ao financiamento da GIRH. O financiamento público da política de desenvolvimento agrícola poderia compensar o impacto, nas comunidades locais, das transferências permanentes das outorgas de direito de uso de recurso hídrico para outra região. Ora, se as transferências permanentes não-reguladas forem permitidas, existe o risco de concentrar a água nas mãos de alguns consumidores ricos, que poderiam comprar toda a água de numerosos pequenos usuários. Isso pode ter consequências na dinâmica social local e regional, nas taxas de desemprego e nas migrações demográficas. Portanto, recomenda-se uma estrutura adequada para gerir custos e benefícios do mercado de água, conforme proposto por Wheeler et al. e Grafton (2017[31]; 2019[32]). De acordo com essa estrutura, os arranjos institucionais e de governança existentes, bem como custos e benefícios do comércio, devem ser avaliados antes da implementação do mercado da água. Assim, mudanças institucionais e de políticas devem ser implementadas, incluindo as outorgas de direitos de uso da água e as capacidades de monitoramento e fiscalização. Por fim, as externalidades devem ser continuamente monitoradas e as mudanças no mercado de água devem ser implementadas conforme necessário.
Providências devem ser tomadas para evitar a acumulação (hoarding) - por meio de política de “use ou perca” - e a captura regulatória pelo operador do mercado. Monitoramento via satélite e modelagens da vazão fluvial poderiam ajudar a controlar e fazer valer as outorgas de uso de águas superficiais. Os Quadro 2.14 e Quadro 2.15 apresentam uma visão geral do funcionamento dos mercados de água no oeste dos Estados Unidos e na Bacia de Murray-Darling, na Austrália.
Quadro 2.14. Mercados de água no oeste dos Estados Unidos
Direito de propriedade da água
Desde 1850, a Califórnia tem aplicado a doutrina das apropriações ribeirinhas (riparian rights). Essa doutrina confere a um proprietário de terras o direito a usar a água em terras adjacentes a um curso d´água (terras ribeirinhas). O proprietário de terras está autorizado a fazer “uso razoável” da água se isso não afetar os direitos de outros proprietários ribeirinhos. Entretanto, não há quantidade específica ligada à outorga ribeirinha, a qual está sujeita a uma partilha imprecisa de facto, em caso de escassez.
Este arranjo pode funcionar em uma região com abundância de água superficial, mas não em região árida, razão pela qual a Califórnia introduziu os direitos de apropriação da água (appropriative water rights) em 1855 (mas manteve os direitos ribeirinhos). O Colorado introduziu a apropriação prévia em 1876 e revogou a doutrina das apropriações ribeirinhas em 1882. Os direitos de apropriação diferem fundamentalmente dos direitos ribeirinhos. Eles são baseados no tempo e na quantidade de desvio inicial (primeiro a usar, primeiro a ter o direito). No caso de escassez hídrica, a prioridade é determinada por critério de antiguidade.
A transferência de um direito de apropriação, no entanto, não é uma transação simples entre duas partes. Todos os estados do oeste dos Estados Unidos têm um legado de registros precários devido à forma descuidada com que muitos direitos de apropriação foram criados, no século XIX. Isso é um impedimento à transferência dos direitos de uso da água para outra parte. Outra regra é a de "não-dano" (no-injury rule). Essa regra determina que mudanças no direito de uso da água não devem afetar negativamente o direito de uso da água de qualquer outra parte, seja ele anterior ou posterior. Se houver dano, o ônus da prova de que não houve dano a terceiros cabe a quem transfere e não a quem contesta. No Colorado, por exemplo, qualquer impacto de uma transferência, não importa quão pequena ou quão distante no futuro, constitui um dano.
Além desses dois impedimentos à transferência dos direitos de apropriação de água, a maioria dos estados do oeste americano determina, em suas constituições, que as suas águas pertencem à população do estado. Isso dá ao estado o direito de decidir sobre como a água deve ser usada e transferida em benefício público. O claro interesse público no uso da água também significa que todo uso deve ser “razoável”. Isto torna todos os direitos à água frágeis. Um direito de uso da água que seria aceitável quando foi reconhecido pela primeira vez pode tornar-se desarrazoado à medida que as condições hidrológicas mudem. Em 1983, por exemplo, a Suprema Corte da Califórnia decidiu que um direito de apropriação de 1940 poderia ser modificado a posteriori em razão de danos agora causados ao Lago Mono.
Quando surgem os mercados de água?
A conectividade física entre o vendedor e o comprador é crucial para a permuta de água (water exchanges). Por exemplo, no Vale San Joaquin, no sul da Califórnia, a construção de um canal, em 1975, ligando os aquedutos do Projeto Federal do Central Valley (CVP, sigla em inglês), no leste, e do Projeto Estadual de Água (SWP, sigla em inglês), no oeste, gerou uma enxurrada de permutas de água. Outro exemplo é o túnel que atravessa uma montanha e transporta água do oeste do Rio Colorado para o leste do estado do Colorado. Devido ao tratamento jurídico diferenciado, a regra de não causar danos não se aplica às águas transpostas, pois não estão mais sujeitas à regra de apropriação prévia quando transpostas para o leste (mais precisamente o projeto Colorado-Big Thompson, C-BT). Os contratos do C-BT tornam todas as águas iguais e transferíveis. Embora incompletos, os dados parecem demonstrar que a maioria da água superficial transposta no oeste dos EUA foi de “água outorgada”, dentro dos limites do sistema de abastecimento estadual, como, por exemplo, no sistema C-BT, no Colorado, e nos sistemas SWP/CVP, na Califórnia.
Considera-se que será necessária uma realocação significativa do uso da água no oeste dos EUA. Todavia, no período 1990-2010, a maioria das águas superficiais transferidas teve arrendamento de um ano, proporcionando flexibilidade de curto prazo, mas não realocação de longo prazo (apenas cerca de 5-10% da quantidade transferida anualmente foi transposta por longo prazo ou permanentemente). A modificação do direito à propriedade da água é essencial para que haja uma realocação do uso da água mais significativa, em longo prazo, dadas as complexidades dos direitos existentes.
Fonte: Hanemann, M. and M. Young (2020[33]), “Water rights reform and water marketing: Australia vs the US West”, https://doi.org/10.1093/oxrep/grz037.
Quadro 2.15. Mercados de água na Bacia de Murray-Darling, Austrália
A Bacia de Murray-Darling (BMD) cobre 14% da Austrália continental. O volume da demanda de água das cidades e para a produção de energia é mínimo, em comparação com as necessidades hídricas para vazões ambientais e para irrigação. Três quartos das culturas irrigadas e das pastagens da Austrália são cultivadas nessa bacia.
A BMD é caracterizada por extrema variabilidade de fluxos fluviais. Os riscos de escassez hídrica para irrigação resultantes da alocação hídrica excessiva para esse fim levaram as autoridades a suspender a alocação de novos direitos de água na BDM. Além disso, em 1995, foi introduzido um limite de uso da água para que novas aduções fossem limitadas aos níveis de 1993-94. Esse foi o primeiro passo para introduzir a comercialização de água na BMD. Permitir a separação dos direitos de uso de água do direito de uso e de propriedade da terra (right to use and own land) foi fundamental para o desenvolvimento de um mercado de água funcional na BDM, processo que levou mais de uma década, entre 1994 e 2006. Essa separação permite que a água seja transposta, de forma independente da terra, entre os usuários, não sendo necessário considerar os requisitos de uso da terra.
O estabelecimento de mercados de água também fornece um mecanismo para enfrentar os riscos de escassez hídrica para o ecossistema por meio da realocação de água entre os irrigantes e o meio ambiente. Em 2002, por meio da Iniciativa Living Murray, foi dado o primeiro passo para a realocação de água destinada ao meio ambiente. A Lei das Águas (2007) foi além e estabeleceu um limite de desvio sustentável (SDL, sigla em inglês) para cada rio e área de gestão de águas subterrâneas na BDM, com implementação prevista para 2019.
O Plano de Bacia (2012) definiu a quantidade de água para o ecossistema que precisava ser recuperada a fim de atender aos SDLs. Em 2008, quase AU$ 9 bilhões de dólares australianos (US$ 7,5 bilhões) foram destinados à recuperação de água para o meio ambiente mediante o aumento da eficiência da irrigação, como melhorias na irrigação das fazendas, na infraestrutura de fornecimento de água e nos medidores (65%) e por meio de recompras de direitos de uso da água (35%). Em 2012, o governo federal comprometeu-se com mais AU$ 1,8 bilhão (US$ 1,25 bilhão) para enfrentar as restrições operacionais que limitavam a distribuição prevista de água para o meio ambiente em toda a BDM. Cerca de 4.000 GL/ano devem ser recuperados até 2025, 55% por meio da recompra de água e 45% por meio de economia e de infraestrutura, em comparação com o consumo médio de água, em longo prazo, na irrigação de 11.000 GL/ano.
Dessa forma, a gestão das vazões ambientais na BMD passou de regulação direta para uma combinação de regulação direta e sistema de outorgas negociáveis (recompra de direitos de uso da água), introduzindo maior flexibilidade. Por outro lado, subsidiar a infraestruturas de irrigação para aumentar vazões ambientais não é rentável; estima-se que o custo médio por litro de água ambiental seja até seis vezes maior que o de compras diretas de outorgas de direito de uso da água.
Dependendo do nível de segurança hídrica, há dois tipos de direitos de uso de água na BDM. A disponibilidade hídrica para os detentores de outorgas de direitos de uso na modalidade de "segurança geral" é declarada como uma proporção de direitos, comumente chamada de "alocação". Essa alocação depende dos recursos armazenados disponíveis atualmente e dos recursos que provavelmente estarão disponíveis durante a estação. Já os detentores de outorgas de direitos de uso na modalidade de "alta segurança" geralmente recebem suas alocações de água a cada ano, embora também estejam sujeitos às alocações declaradas. A existência de dois tipos de outorgas de direitos de uso com diferentes níveis de segurança permite aos usuários expressarem suas preferências quanto ao risco, o que se reflete nos preços das outorgas.
Fonte: Grafton, Q. and J. Horne (2014[34]),“Water markets in the Murray-Darling Basin”,http://dx.doi.org/10.22459/GW.05.2014.08.
Combinando instrumentos de políticas públicas
Em contraste com o uso de apenas um instrumento econômico, as combinaçõesde instrumentos podem aumentar a relação custo-efetividade e a aceitação do público quanto à consecução dos objetivos de gestão da bacia do PPA. Em seguida, serão analisadas três combinações de instrumentos: (1) cobrança pelo uso de recursos hídricos e mercados de água; (2) cobrança pelo uso de recursos hídricos e regulação direta; e (3) mercados de água e regulação direta.
Cobranças pelo uso dos recursos hídricos e mercados de água
Quando cobranças pelo uso de recursos hídricos são aplicadas ao mesmo público-alvo na presença de um mercado de água (cap-and-trade de outorgas de água), o efeito causado difere de acordo com o valor da cobrança. As cobranças fixadas a uma taxa inferior ao preço inicial de mercado não alteram o nível geral de adução fixado, mas reduzem a demanda por outorgas; o preço de mercado alinhar-se-á gradualmente à taxa de cobrança (se todos adutores forem obrigados por ambos os instrumentos). Se o valor da cobrança for mais elevado que o preço de mercado, o incentivo para redução marginal (economia de água) aumenta, e a redução, então, supera o limite estabelecido pelo mercado de água. A demanda por outorgas de água, e, consequentemente, seus preços, caem para zero, sendo as cobranças pela captação de água o único instrumento ativo.
Apesar dessa aparente incompatibilidade em termos de efetividade, a conjugação de instrumentos poderia melhorar custo-eficiência (cost-efficiency) quando as cobranças pelo uso dos recursos hídricos forem utilizados para garantir um preço mínimo de mercado ("piso"), considerando que todos os adutores estejam sujeitos a ambos os instrumentos (ou seja, se os dois instrumentos forem aplicados às mesmas unidades de adução de água). Embora um "piso" possa reduzir a eficiência estática em situações em que o mercado de água apresente preços de outorgas abaixo do valor mínimo, tal efeito, bem como a segurança de preço-relativo que produz, normalmente, aumenta a eficiência dinâmica em comparação com um sistema de outorgas negociáveis “puro” (tradable permit system - TPS) . A utilização de um preço mínimo ajudaria na arrecadação sobre rendas inesperadas (windfall rents) geradas pela livre alocação de outorgas. As cobranças pela captação de água também poderiam ser utilizadas para assegurar um "teto de preços" (ou "preço de válvula de segurança"), permitindo aos captadores retirar água para a qual não possuem outorga em troca da cobrança de um valor máximo. No entanto, assegurar os custos de conformidade aos participantes do TPS por meio de um teto de preços reduz a certeza com relação aos resultados ambientais e pode diminuir os incentivos dinâmicos.
As cobranças pelo uso de recurso hídrico e os mercados de água podem levar à escassez hídrica temporária em diferentes setores e áreas geográficas (ou seja, um ponto crítico - hot spot - de escassez). A aplicação de uma cobrança adicional aos participantes de mercados de água localizados em sub-bacias, onde a retirada de água cria uma maior escassez marginal que em outras sub-bacias, pode resolver esse problema. A Figura 2.9 ilustra esse conceito. O captador B, cuja captação produz danos marginais muito maiores à escassez de água que outros captadores, está sujeito tanto ao mercado de água como à cobrança pelo uso dos recursos hídricos, o que aumenta o incentivo para economizar água. Se o valor da cobrança for igual à diferença entre o preço da outorga e os danos marginais totais da captação à escassez de água, como ilustrado, então a eficiência estática total é mantida e a eficiência, como um todo, aumenta (embora os preços das outorgas diminuam se o limite do mercado de água não for ajustado para compensar).
Embora a combinação de instrumentos de precificação com outros baseados em quantidade possa produzir maior bem-estar social do que quando usados isoladamente, pouquíssimas dessas combinações têm sido utilizadas na prática. A aplicação de uma cobrança pelo uso de recursos hídricos juntamente com um mercado de água aumenta a carga administrativa para os participantes e para as autoridades relevantes. Os custos de transação associados à implementação e à administração de um mercado de água aumentam com o uso de “pisos” e “tetos” de preços. Entretanto, instrumentos híbridos de preço-quantidade melhoram a flexibilidade para lidar com as incertezas. Um piso, em um sistema cap-and-trade, fornece incentivo contínuo para economizar água, se os custos marginais dessa economia estiverem sobrevalorizados (assim como a geração mínima de receita), enquanto um teto de preços evita custos excessivos, se os custos marginais de economizar água estiverem subvalorizados (juntamente com a certeza de custo-máximo da conformidade). Da mesma forma, um limite (cap) possibilita a garantia de economia de água que a cobrança pela captação de água, por si só, não pode proporcionar (reduzindo, assim, a aversão à cobrança).
Cobranças pelo uso de recursos hídricos e regulação direta
Quando ambos os instrumentos visam os mesmos captadores, a regulação direta ajuda a superar falhas de mercado (por exemplo, problema agente-principal) e falhas de informação que prejudicam a eficácia dos instrumentos de precificação. Por outro lado, as cobranças pelo uso de recursos hídricos podem reduzir o efeito "rebote" que a regulação direta pode provocar2. A regulação direta combinada com um instrumento de precificação também pode reduzir a ocorrência de pontos críticos de escassez hídrica; enquanto os instrumentos de precificação influenciam a retirada total de água, a regulação direta pode influenciar a localização da captação e seu momento (timing).
Em termos de eficiência de custo, adicionar a regulação direta à cobrança pelo uso de recursos hídricos pareceria supérfluo se o custo marginal da economia de água previsto na regulação fosse mais baixo que o valor da cobrança. Os captadores, certamente, já teriam cumprido tal regulação para conseguir uma economia de água a um custo menor do que o valor da cobrança. A Figura 2.10 ilustra essa situação para um determinado captador cuja economia de água é necessária ou incentivada pela regulação. No mundo real, no entanto, a eficiência estática aumenta se a regulação exigir ou provocar economias de água, com custos marginais inferiores ao valor da cobrança pelo uso de recursos hídricos (por exemplo, níveis de rigor A a C, na Figura 2.10), que não teriam sido alcançadas devido a falhas de mercado. Entretanto, se os níveis de economia de água exigidos pela regulação tiverem um custo marginal maior que o valor da cobrança pela captação, então a cobrança não resultará em nenhuma economia adicional de água (por exemplo, níveis de rigor D e E, na Figura 2.10).
Geralmente, para um determinado nível de economia de água, a combinação de um instrumento de precificação com um instrumento de regulação direta, muitas vezes, levaria a custo-efetividade maior do que usar apenas a regulação direta, pois os instrumentos de precificação equilibram o incentivo marginal da economia de água quando a regulação direta não consegue fazê-lo. Além disso, um aumento previsível (pré-planejado) no rigor das exigências regulatórias e dos valores das cobranças pela captação de água amplia o custo-eficiência dinâmico.
Ao combinar um instrumento de precificação com a regulação direta para lidar com a ocorrência de pontos críticos (hotspots) de escassez, a eficiência estática é mantida, com um aumento da eficiência total potencial, se o custo marginal adicional da economia de água do instrumento secundário for igual à diferença entre o custo marginal do instrumento primário e o dano marginal à escassez de água3.Como discutido acima, esse também é o caso quando a cobrança pela captação de água é combinada com um sistema de outorgas negociáveis (Figura 2.9).
Uma combinação bem planejada de regulação direta e cobranças pelo uso de recursos hídricos seria mais aceitável pública e politicamente que a implementação de um alto valor de cobrança ou de regulação rigorosa para atingir determinado nível de economia de água. O uso de regulação para complementar uma cobrança pela captação de água pode reduzir a incerteza sobre ações de curto prazo e de mais longo para a economia de água, especialmente se o valor da cobrança for muito baixo (em comparação aos custos de medidas de economia de água)4. Entretanto, a flexibilidade dessa combinação provavelmente diminuiria à medida que o rigor da regulação aumente.
Mercados de água e regulação direta
A regulação direta pode ser usada para complementar um mercado de água para evitar pontos críticos de escassez hídrica. No entanto, complementar um mercado de água com uma regulação direta qualquer, sem levar em consideração seu escopo ou nível de restrição, não reduz o volume total de água captada que, ceteris paribus, permanecerá, no agregado, perto do limite máximo (cap). Da mesma forma, o uso de mercados de água para apoiar a regulação direta não reduz a economia total de água além do que se esperaria se a regulação fosse usada isoladamente (porque uma vez que cada captador atende a suas exigências regulatórias, a demanda e o preço das outorgas de água caem para zero).
Um mercado de água (com limite total imposto por um sistema de cap-and-trade) pode ser usado para aumentar a flexibilidade e reduzir o custo de cumprir as regulações específicas para subgrupos (por exemplo, setor, distrito de irrigação, tipo de indústria). Captadores com um desempenho melhor que o previsto na regulação podem gerar créditos que aqueles com desempenho pior poderão comprar para compensar seu déficit. Essa é a essência de um sistema de linha de base e crédito (baseline-and-credit system).
O uso de regulação direta para complementar um mercado de água tem impacto positivo no custo-efetividade estático e dinâmico, se a regulação reduzir falhas de mercado e de informação que limitam a influência do sinal de preço produzido pelo mercado de água. Entretanto, a regulação deve exigir ou incentivar o uso de tecnologias ou comportamentos para economia de água com um custo marginal abaixo do preço da outorga para manter o custo-efetividade estático. Caso contrário, os custos totais de conformidade aumentam com a demanda por outorga e há uma provável redução dos preços das outorgas, em contrapartida, diminuindo os benefícios de eficiência de um mercado de água.
Uma exceção a isso é quando a regulação direta tenta resolver os pontos críticos de escassez hídrica, com a imposição de custos marginais de economia de água iguais à diferença entre o preço da outorga e os danos marginais totais à escassez de água da captação em questão. Nesses casos, a eficiência estática é mantida e há um aumento de custo-efetividade econômico em geral.
O uso de um mercado de água juntamente com a regulação pode alcançar determinado nível de economia de água de forma mais eficiente (tanto estática quanto dinamicamente) do que o uso da regulação direta isoladamente. Isso acontece porque os instrumentos de precificação equilibram o incentivo marginal de economizar água quando a regulação direta não consegue fazê-lo. Entretanto, para manter custo-efetividade, o limite máximo e o piso do TPS devem ser estabelecidos considerando a economia de água esperada a partir da regulação.
A aceitação política será provavelmente diferente a depender de qual instrumento seja o primário ou o secundário. Usar a regulação direta para resolver problemas de pontos críticos em um mercado de água, provavelmente, aumentará os custos totais de conformidade, reduzindo, assim, a aceitabilidade em comparação a implementação isolada de um mercado de água. O mesmo se aplica a regulações mais gerais (por exemplo, desempenho mínimo ou padrões tecnológicos aplicáveis em geral), mesmo que as medidas ou os comportamentos induzidos tenham custos marginais inferiores aos do preço da outorga. A redução da flexibilidade que isso representa pode reduzir a aceitabilidade. Além disso, a natureza de um mercado de água implica que os preços das outorgas podem variar ao longo do tempo, algumas vezes consideravelmente. Embora possa levar a ineficiências e menor viabilidade, uma regulação direta complementar pode ajudar a resolver incertezas e garantir um nível mínimo de eficiência ambiental em curto prazo (e potencialmente em longo prazo). Além disso, ao associar um mercado de água a um instrumento regulatório, aumentando a flexibilidade e a possibilidade de reduzir os custos de conformidade, a aceitabilidade e a capacidade de lidar com as incertezas podem aumentar.
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[14] OECD (2015), Stakeholder Engagement for Inclusive Water Governance, OECD Studies on Water, OECD Publishing, Paris, https://dx.doi.org/10.1787/9789264231122-en.
[20] OECD (2015), Water Resources Allocation: Sharing Risks and Opportunities, OECD Studies on Water, OECD Publishing, Paris, https://dx.doi.org/10.1787/9789264229631-en.
[19] OECD (2015), Water Resources Governance in Brazil, OECD Studies on Water, OECD Publishing, Paris, https://dx.doi.org/10.1787/9789264238121-en.
[12] OECD (2011), Water Governance in OECD Countries: A Multi-level Approach, OECD Studies on Water, OECD Publishing, Paris, https://dx.doi.org/10.1787/9789264119284-en.
[18] OECD/ANA (2021), “Workshop on Strengthening River Basin Governance in the Piancó-Piranhas Açu River Basin (25-28 May 2021)”.
[11] OECD/ANA (2019-21), “Water Governance Workshops”.
[21] Poff, L., R. Tharme and A. Arthington (2017), “Evolution of environmental flows assessment science, principles, and methodologies”, http://dx.doi.org/10.1016/B978-0-12-803907-6.00011-5.
[23] UNESCO (2021), “Irrigators’ tribunals of the Spanish Mediterranean coast: The Council of Wise Men of the plain of Murcia and the Water Tribunal of the plain of Valencia”, United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization, https://ich.unesco.org/en/RL/irrigators%E2%80%91tribunals-of-the-spanish-mediterranean-coast-the%E2%80%91council-of-wise-men-of-the-plain-of-murcia-and-the-water-tribunal-of-the-plain-of-valencia-00171.
[31] Wheeler, S. et al. (2017), “Developing a water market readiness assessment framework”, Journal of Hydrology, Vol. 552, pp. 807-820, http://dx.doi.org/10.1016/j.jhydrol.2017.07.010.
Anexo 2.A. Plano de ação
As tabelas resumem as principais ações apresentadas no Capítulo 2.
Tabela do anexo 2.A.1. Fortalecendo a governança multinível e o uso de instrumentos econômicos na bacia hidrográfica do rio Piancó-Piranhas-Açu
Adotar um arranjo de governança que garanta a gestão dos recursos hídricos na escala apropriada e que promova coordenação eficaz |
Utilizar as Agências estaduais existentes e certificar-se de que todos os papéis e as responsabilidades estejam claramente definidos; nesse sentido, conduzir autoavaliações que analisem o estado da arte dos marcos da política de governança dos recursos hídricos (o que), as instituições (quem) e os instrumentos (como), além da necessidade de melhorias ao longo do tempo, para todas as vertentes da água (a gestão de recursos da água, a provisão dos serviços da água e a redução de riscos de desastres relacionados à água). |
Seguindo o princípio da subsidiariedade, buscar e acordar entre as partes interessadas, a menor escala apropriada para cumprir as vertentes da gestão da água acima identificadas. |
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Avaliar se as instituições em nível de bacia estão entregando seus serviços (uma vez que tais serviços sejam claramente definidos) usando guias de desempenho que identifiquem lacunas e que tracem planos para superar tais lacunas. |
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Fortalecer o engajamento das partes interessadas |
Produzir e disseminar informações detalhadas entre as partes interessadas para construir confiança, de modo que todos tenham os mesmos dados que embasem as discussões e promovam transparência e entendimento comum das situações em nível de bacia. |
Dar atenção à participação dos municípios na gestão de recursos hídricos usando métodos e ferramentas de comunicação específicos para cada situação, com reuniões interativas e online, bem como reuniões presenciais nos municípios. |
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Fazer esforço personalizado para alcançar as comunidades carentes/desfavorecidas, considerando valores tradicionais e ambientais e valorizando o conhecimento histórico e ecológico das comunidades nativas |
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Investir no monitoramento e no controle hidrológico |
Tornar obrigatório que o outorgado instale sistemas de controle e que reporte as informações sobre as captações de água, com a possibilidade de suspensão da outorga para os casos em que o usuário, repetidas vezes, não apresentar os relatórios ou apresentar dados incorretos; aumentar a capacidade de fiscalização com um cardápio de instrumentos de controle (fiscalizadores em campo, uso de imagens, etc.). |
Requerer avaliações mais detalhadas sobre a disponibilidade hídrica e os usos em áreas de estresse hídrico; criar regras mais rígidas para a gestão dos recursos hídricos e para alocação de água nessas áreas, além de aumentar a capacidade de fiscalização. |
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Utilizar modelos hidrológicos como ferramenta para promover o diálogo entre os usuários e apoiar a tomada de decisão; compartilhar as informações do modelo hidrológico utilizado com as partes interessadas para possibilitar-lhes melhor compreensão da situação hidrológica e de sua provável evolução. |
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Financiar a operação e a manutenção (O&M) da infraestrutura de água bruta |
Exigir que os usuários (por exemplo, agências estaduais de água) cubram integralmente os custos de operação e manutenção de reservatórios federais; para isso, trabalhar para a aprovação do projeto de lei recentemente apresentado ao Congresso pelo Ministério do Desenvolvimento Regional. |
Exigir que os quatro estados atendidos pelo Projeto de Integração do Rio São Francisco (PISF) – Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte – cubram integralmente os custos de operação e manutenção do PISF; para tanto, trabalhar no sentido de revisar a cobrança pelo serviço de adução de água bruta feita pela ANA. |
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Como medida transitória para a recuperação total dos custos de O&M por meio de cobrança de usuários (serviço de adução de água bruta), considerar a possibilidade de mobilização de outras fontes de financiamento, tais como, alocar parte da receita das cobranças pelo uso de recurso hídrico, nos termos da Lei 9.433 - desde que sejam demonstrados os benefícios públicos da oferta de água (por exemplo, regulação das vazões dos rios). Destinar o aumento das receitas de imposto fundiário proveniente do aumento do preço da terra que foi servida por infraestrutura hídrica (captura de valor). Pagar por serviços ecossistêmicos para infraestrutura hídrica usando soluções baseadas na natureza. |
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Alocações de água e cobrança pelo uso da água |
Estender a cobertura da cobrança a toda a bacia hidrográfica do rio Piancó-Piranhas-Açu, de acordo com a Lei das Águas de 1997; diferenciar as taxas de cobrança de acordo com o risco da falta de água (e não de acordo com os usuários) para proteger os corpos d´água dos quais a água foi retirada contra o risco de escassez. |
Destinar a receita da cobrança aos projetos de gestão de recursos hídricos na bacia onde foram arrecadados, seguindo o princípio de que a água paga a água, com o objetivo de prevenir os riscos de escassez hídrica. |
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Alocação da água e mercado da água |
Para corpos de água com déficit hídrico crônico, definir os limites no volume total de água disponível para a alocação (isto é, um limite de captação) que seja aceitável a todas as partes interessadas, incluindo o meio ambiente e as comunidades; nesse sentido, incluir uma "matriz de risco” em cada marco regulatório. |
Diferenciar o prazo de validade das outorgas de uso da água de acordo com o risco de escassez hídrica, com alocações anuais para áreas de risco e títulos de longo prazo para áreas bem providas de água. |
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Considerar promover leilões de outorgas para a bacia do rio Piancó-Piranhas-Açu e alocar os rendimentos dos leilões para financiar projetos de gestão de risco de escassez hídrica na bacia. |
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Considerar a combinação entre cobranças pelo uso dos recursos hídricos e mercados de água para garantir um preço mínimo de mercado (“piso”) e evitar "pontos críticos" de escassez hídrica, aplicando a taxa onde o comércio criar escassez. |
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Utilizar seguro agrícola para compensar áreas produtoras que não se beneficiaram de outorgas para irrigação. |
Continuar a cobrir o risco de não-produção, em vez de procurar cobrir o risco de falta de água para irrigação; desenhar instrumentos de gestão de risco agrícola que sustentem a renda, desvinculados da produção agrícola. |
Definir limite de risco de seca, um "nível aceitável" de risco de seca, ao definir os prêmios de seguro; isso também ajudará a resolver problemas de seleção adversa. |
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Em vez de subsidiar prêmios do seguro para os agricultores pobres, aplicar prêmios mínimos a todos os agricultores, introduzir prêmios adicionais para os ricos e redistribuir a renda aos mais pobres para ajudá-los a pagar o prêmio mínimo. Isso ajuda a abordar questões de risco moral. |
Observações
← 1. A homogeneidade de fatores geomorfológicos, hidrográficos e hidrológicos caracteriza as Unidades de Planejamento Hidrológicos (UPH). UPHs incluem subdivisões da bacia hidrográfica, sub-bacias de rios tributários ou segmentos de rios principais com continuidade espacial.
← 2. O efeito rebote ocorre quando o aumento da eficiência do uso da água reduz o custo por unidade do bem agrícola ou industrial produzido (ou por unidade de água fornecida aos usuários finais), aumentando o consumo de água de acordo com a elasticidade-preço da demanda desses bens ou serviços.
← 3. Um instrumento "primário" estabelece o incentivo geral ou os requisitos para economia de água, com um escopo mais amplo do que o do instrumento "secundário" com o qual ele é combinado.
← 4. Uma regulação que exige a adoção de uma determinada tecnologia (por exemplo, irrigação por gotejamento) frequentemente induz uma mudança mais permanente que os incentivos de economia de água como instrumento de precificação pode provocar, que podem ser revertidos após o sinal de preço ser reduzido ou removido.